terça-feira, 24 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Poesia e urbanidade" - Para Antonio Cicero

"Poesia e urbanidade" - Para Antonio Cicero




Por ter sido convidado pelo SESC nacional para participar da mesa redonda "Poesia e Urbanidade", na Sétima Bienal Internacional do Livro de Alagoas (22 de novembro de 2015), ao lado dos poetas Antonio Cicero e Tainan Costa, fiz este pequeno ensaio. Inicialmente, cabe dizer que a palavra "urbanidade" abrange múltiplos significados, tendo, principalmente, como os mais frequentes, os usados para: 1) referir-se à cidade, ao grande centro citadino, como uma oposição à ruralidade; 2) referir-se à civilidade, isto é, ao que é civilizado em oposição ao que é bárbaro.

Assim, a palavra "urbanidade" tem origem latina, vem de "urbanitas"/"urbanitatis" que significa morada, morada na cidade (Roma, a cidade por excelência), civilidade, elegância, graça de linguagem. "Urbanitas" possivelmente vem de "urbs/urbis" que significa cidade ou população de uma cidade. Logo, "urbanus" seria o urbano, o civilizado. E "urbane", com urbanidade, civilizadamente, espiritualmente, polidamente.

O grande desafio seria relacionar urbanidade e poesia. Que critérios seriam possíveis de mesclar ambas as esferas, que relações íntimas haveria entre a poesia e urbanidade. Portanto, precisaríamos fazer alguns questionamentos e respondê-los:

1) A poesia é urbana? Em que sentido? Sua origem é urbana, isto é, deu-se na cidade? Ou nos arredores da cidade? Ou sua origem é anterior às cidades?
2) Terá sido (ou é) a poesia fator indispensável para a civilidade, para a formação da urbanidade (em qualquer sentido que a palavra originalmente seja empregada)
3) Os poetas se preocuparam, em algum momento, com a civilidade, com a urbanidade? Se sim, ainda se preocupam?
4) Que pode a poesia contra a barbárie?
5) As cidades cantadas pelos poetas

Estes questionamentos iniciais precisam de uma investigação minuciosa, rigorosa, o que, aqui, neste momento, não irei fazer, porque adianto-lhes que me interessa apenas a superfície explícita e visível do tema para que eu possa expor, sob os ditames da razão, algumas relações interessantes que há/houve entre poesia e urbanidade, senão vejamos:

Para Lewis Mumford,  as cidades passaram a existir: "nos primeiros aglomerados ao redor de um túmulo ou de um símbolo pintado, uma grande pedra ou uma caverna sagrada, temos o início de uma série de instituições cívicas que vão do templo ao observatório astronômico, do teatro à universidade".

Possivelmente, a poesia é anterior à civilização no sentido de "civilitas", pois, inicialmente oral, praticada por aedos, deve ter contribuído para a formação da "urbanidade". Outro fato importante que deve ser lembrado é que os poetas participavam ativamente do processo civilizatório, tanto é verdadeira esta afirmação que Platão praticamente os excluía da sua "República" ideal, pois a influência dos poetas poderia "perverter"/ "desvencilhar" os jovens, enquanto aprendizes em formação intelectual, das regras da ditadura do conhecimento platônico. Na "cidade" idealizada por Platão, a poesia era uma "persona non grata". Eis que no Livro III da República, ele diz que as palavras “quanto mais poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser livres”. Na tradução primorosa de Allan Bloom (BLOOM, 1991, p. 64):

"We'll beg Homer and the other poets not to be harsh if we strike out these and all similar things. It's not that they are not poetic and sweet for the many to hear, but the more poetic they are, the less should they be heard by boys and men who must be free and accustomed to fearing slavery more than death"

Pois, para Platão, importava a “verdade” e não “imitadores da imagem da virtude”, "shouldn't we set down all those skilled in making, beginning with Homer, as imitators of phantoms of virtue and of the other subjects of their making? They don't lay hold of the truth” (BLOOM, 1991, p.283)

Mas a cidade, o centro urbano, também não era bastante do agrado de alguns poetas, é o que parece no começo. Muitos preferiam o isolamento, o silêncio dos campos, da vida dada à natureza e à paz, para assim poderem escrever os seus poemas. A exemplo, o grande Horácio, Quintus Horatius Flaccus, que preferiu residir na região sabina, perto do Monte Corgnaleto, sob o sossego campestre, visto ter recusado o convite de Augusto, que o desejava como seu secretário. Ao contrário do que Platão afirma sobre os poetas, de eles não se preocuparem com a verdade, Horácio diz em sua Sátira Primeira “Investiguemos seriamente a verdade”. Outros preferiam o cerne das cidades, pois havia nestas, como em Atenas, competições poéticas que davam aos poetas louros, glória, fama.

Pode ser também a cidade uma algaravia, uma babel, uma multiplicidade de sons e imagens, como podemos perceber pelo impactante e intrigante poema concreto-visual do mestre Augusto de Campos:

“Cidade City Cité”

atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubri
mendimultipliorganiperiodiplastipubliraparecipro
rustisagasimplitenaveloveravivaunivora
cidade
city
cité

As cidades dos poetas podem ser tanto reais quais Roma, Atenas e Troia tão cantadas pelos antigos, Lisboa (Fenando Pessoa), Recife e Sevilha (por João Cabral de Melo Neto),  Barcelona (Alex Varella), Rio de Janeiro (por Antonio Cicero), Maceió (por Lêdo Ivo) quanto imaginárias quais Ítaca, Macondo, Atlântida, Pasárgada e muitas outras que o imaginário humano foi capaz de inventar.

Os acontecimentos nas cidades, as pessoas, os lugares, tudo foi, é e pode ser cantado pelos poetas. Até a possibilidade da chegada de bárbaros (que não chegam, para desencanto de todos!) – “Porque é já noite, os bárbaros não vêm” - como fez, com toda a beleza, Konstantínos Kaváfis em seu magnânimo poema “À espera dos bárbaros”. Ou os poetas constatam o modo de vida nas cidades como fez Fernando Pessoa sob o heterônimo Alberto Caeiro “nas cidades a vida é mais pequena”, em “O Guardador de Rebanhos”. Tema para um tratado ad infinitum, decerto. Abaixo um poema que consta em meu livro “Laringes de Grafite (Vidráguas, 2012):

"Eu não sei cantar cidades"



Eu não sei cantar cidades.
A minha é bela.
Que bom para ela.
Possui pássaros tantos
De variados cantos,
Peixes exóticos que expressam ódio,
Pedras que gritam
Pelas pontas dos dedos,
Planaltos de altos e baixos,
Planícies de disse-não-disse,
Becos de palavras distraídas,
Ruas que precisam ser digeridas,
Uma ponte pênsil,
Postes postos em prontidão,
Praças que abraçam alegrias
E graças - Às vezes,
Algum incidente que machuca.
Gente?
Eu não sei cantar cidades...
A minha é bela.
Que bom para ela. 


Ao menos, uma coisa é certa: a maior de todas as cidades, o maior de todos os lugares é a poesia, a própria poesia. Nela tudo pode ser criado, tudo pode destruído, tudo pode ser reconstruído, tudo pode ser  engendrado sob os matizes múltiplos da imaginação, com as palavras escolhidas para serem as melhores, na ordem que parece ser escolhida por elas. É a poesia capaz de “lançar mundos no mundo” como escreveu precisamente Caetano Veloso em sua canção “Livros”.


Adriano Nunes 






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