segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Arish e a sua engenhosa invenção"

"Arish e a sua engenhosa invenção"


Chove muito forte sobre a tribo de Arish.
As crianças estão assustadas. Os bichos
Também. Ninguém entende por que isso.
Arish tem cento e dois anos. É o mais antigo
De todos. É o chefe de sua pequena tribo.
Ele não imagina que o seu clã no porvir
Será um vasto império, com teatros e ritos
Sagrados, com promessas de prêmios íntimos.
Chove muito forte. Os bichos gritam, gritam.
Todos querem saber o porquê disso.
Quando querem saber de algo visitam
A velha e estranha cabana de Arish.
É ele quem cria o mundo dos seus, mitos,
Lendas, verdades, ilusões, sonhos, mentiras.
Ele não sabe que tudo que ele inventa brilha
Nos olhos dos seus dia após dia.
Hoje Arish vai explicar o surgir
Da forte chuva e do vento frio.
A sua grande invenção, ele imagina,
Só será no dia de sua morte dita.
Quase agora a todos os homens pediu
Que matassem dois carneiros, disse,
Depois, que retirassem as vísceras,
Que eles chamam de bofes e tripas,
Que as pusessem num caldeira de zinco,
Com gordura de camelos e água do rio
Tatzarjid, que fervesse tudo, que, à vista
Das crianças fervesse tudo, de nítida
Forma, à vista das crianças pequeninas.
Por que Arish à vista delas isso fazia?
Por acaso ou malabarismo mágico, digo,
Feitiço, crença ou algo desconhecido,
O certo é que a chuva neste instante finda.
As crianças brincam em volta das cinzas,
Na lama, elas no que veem acreditam.
Arish irá morrer logo logo, daqui
A pouco, rodeado dos seus, no pio
Da noite, rodeado de suas invenções míticas,
De seus pesadelos e astúcias, da vida
Que deu a todos. Mas, antes da despedida,
Dirá, som por som, a todos os seus filhos
Como se formou o mundo, o infinito.
Quase nada diz. Quase, por um triz!
Ele não sabe como dizer, insiste, insiste,
Sabe que é o mais velho de todos, triste
Parece, mas não está. E, súbito, diz
Que o infinito e tudo que há foi gerido
Por um furor fortíssimo, o amor, é isso.
Arish não sabia que um dia poderia
Criar um poderoso império, um circo
Policromático de solidões e sentidos.
Ele não sabia que outros nomes dariam
À sua engenhosa invenção, ao seu mito,
Que iriam moldá-lo, desconstruí-lo.

Adriano Nunes: "O que me afaga agora"

"O que me afaga agora"


Estes são os meus dedos
Delicados, têm medo
De segurar a rosa,
De folhear o livro
Antigo, de saber
Das quimeras mais táteis,
Do lápis sobre a mesa,
De ferir-se, cortar-se,
Medo de que apareças,
De percorrer, sem jeito,
Do teu corpo as metáforas,
O que possa ser isso,
O que me afaga agora,
De um possível prazer...
Estes são os teus dedos?

Adriano Nunes: "Tragédia cibernética"

"Tragédia cibernética"



Em um site conheci-te.
Em meio a medos e-mails
Somente aflitos trocamos.
Depois nos enveredamos
Pelas redes sociais
Até não ter tempo mais
Pra coisa alguma, nem mesmo
Pra ver-nos. Era só print,
Selfies e curtidas e
Iguais compartilhamentos,
Até a wi-fi seguinte!
Vídeos, chats, perfis, alarmes...
E vivíamos por dentro
De tudo de um e do outro.
Como o mundo era pouco!
E, vez ou outra, check-in
Em algum lugar, enfim,
Em que nós jamais estávamos.
Até que acabou o amor,
E com um click bloqueaste-me.

sábado, 28 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Ser-me, até ficar tonto"

"Ser-me, até ficar tonto"


Eu sou o que não vem,
Como se fosse quem
Pudesse mesmo além
Estar de si, por bem
Ou mal, quase ninguém.
Depois é que me encontro
Nalgum estranho ponto
Em mim. E não há como
Ser-me, até ficar tonto.
Suponho que me exponho
Por ser quem sou, em sonho,
Até não me ser. Pronto:
Sou? O ser que me tem
Não me contém também.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Não desiste o acaso" - Para Fred Girauta​

"Não desiste o acaso" - Para Fred Girauta​



Não desiste o acaso
De fazer de tudo pouco caso. 
Vem às vezes fantasiado
De alegria, engano ou engasgo. 
Vem às vezes sob o passo 
Trôpego qual de um velho carrasco, 
Ofertando a forca e o cadafalso. 
Vem - ó várias vezes vem! - disfarçado, 
Coberto com os gastos trapos
Da  traiçoeira esperança, 
- E como a valsa da vida dança! -
Às vezes vem sob máscaras
E parece que dita o tudo-ou-nada,
E parece que dura, enquanto passa.
Vem às vezes fazendo graça, 
Pirraça, palhaçada, até piadas
Sobre por que vem, é claro,
Vem qual lance inexplicável,
Sobre o tabuleiro dos fatos, de dados
Por si treinados, numa aposta furada. 
Vem diversas vezes trajado
De gala, com grácil fala,
Dá-nos a mão, tão educado!,
Quer-nos ao lado, quer-nos levar às
Profundezas de íntimos báratros.
Não desiste o acaso
De fazer de tudo pouco caso.
Por fim, quando amargo e cansado,
Atira a sua última carta:
À socapa, pede o apoio de Átropos,
Não quer saber mais de papo,
Grita: corta o fio, corta o fio, rápido!

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "No que existe"

"No que existe"


Mais feliz
Ou mais triste,
Bem me fiz
No que existe.
Tudo quis,
Tudo em riste.
De algum bis
Quem desiste?
Dá-me um giz!
Tudo insiste
Em ser chiste!
O amor diz.
Por um triz,
Não persiste
A dor. Quis-te,
Cicatriz!

Adriano Nunes: "Cegamente no que ousou"

"Cegamente no que ousou"

Tão desnorteado o amor
Que nem a si mesmo achou.
Dias e noites, amador,
Cegamente no que ousou.
Quaisquer rumos, rotas ou
Quaisquer regras a supor,
Nenhum sonho se mostrou
Leve ou ameaçador.
Tão sem fulgor, tão sem cor -
Eis a que ponto chegou.
O, libérrimo leitor,
Dize-me, se possível ou
Se por pena ou por favor,
Com quais as asas voou
Aquele lírico amor
De livros, que me animou!

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Poesia e urbanidade" - Para Antonio Cicero

"Poesia e urbanidade" - Para Antonio Cicero




Por ter sido convidado pelo SESC nacional para participar da mesa redonda "Poesia e Urbanidade", na Sétima Bienal Internacional do Livro de Alagoas (22 de novembro de 2015), ao lado dos poetas Antonio Cicero e Tainan Costa, fiz este pequeno ensaio. Inicialmente, cabe dizer que a palavra "urbanidade" abrange múltiplos significados, tendo, principalmente, como os mais frequentes, os usados para: 1) referir-se à cidade, ao grande centro citadino, como uma oposição à ruralidade; 2) referir-se à civilidade, isto é, ao que é civilizado em oposição ao que é bárbaro.

Assim, a palavra "urbanidade" tem origem latina, vem de "urbanitas"/"urbanitatis" que significa morada, morada na cidade (Roma, a cidade por excelência), civilidade, elegância, graça de linguagem. "Urbanitas" possivelmente vem de "urbs/urbis" que significa cidade ou população de uma cidade. Logo, "urbanus" seria o urbano, o civilizado. E "urbane", com urbanidade, civilizadamente, espiritualmente, polidamente.

O grande desafio seria relacionar urbanidade e poesia. Que critérios seriam possíveis de mesclar ambas as esferas, que relações íntimas haveria entre a poesia e urbanidade. Portanto, precisaríamos fazer alguns questionamentos e respondê-los:

1) A poesia é urbana? Em que sentido? Sua origem é urbana, isto é, deu-se na cidade? Ou nos arredores da cidade? Ou sua origem é anterior às cidades?
2) Terá sido (ou é) a poesia fator indispensável para a civilidade, para a formação da urbanidade (em qualquer sentido que a palavra originalmente seja empregada)
3) Os poetas se preocuparam, em algum momento, com a civilidade, com a urbanidade? Se sim, ainda se preocupam?
4) Que pode a poesia contra a barbárie?
5) As cidades cantadas pelos poetas

Estes questionamentos iniciais precisam de uma investigação minuciosa, rigorosa, o que, aqui, neste momento, não irei fazer, porque adianto-lhes que me interessa apenas a superfície explícita e visível do tema para que eu possa expor, sob os ditames da razão, algumas relações interessantes que há/houve entre poesia e urbanidade, senão vejamos:

Para Lewis Mumford,  as cidades passaram a existir: "nos primeiros aglomerados ao redor de um túmulo ou de um símbolo pintado, uma grande pedra ou uma caverna sagrada, temos o início de uma série de instituições cívicas que vão do templo ao observatório astronômico, do teatro à universidade".

Possivelmente, a poesia é anterior à civilização no sentido de "civilitas", pois, inicialmente oral, praticada por aedos, deve ter contribuído para a formação da "urbanidade". Outro fato importante que deve ser lembrado é que os poetas participavam ativamente do processo civilizatório, tanto é verdadeira esta afirmação que Platão praticamente os excluía da sua "República" ideal, pois a influência dos poetas poderia "perverter"/ "desvencilhar" os jovens, enquanto aprendizes em formação intelectual, das regras da ditadura do conhecimento platônico. Na "cidade" idealizada por Platão, a poesia era uma "persona non grata". Eis que no Livro III da República, ele diz que as palavras “quanto mais poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser livres”. Na tradução primorosa de Allan Bloom (BLOOM, 1991, p. 64):

"We'll beg Homer and the other poets not to be harsh if we strike out these and all similar things. It's not that they are not poetic and sweet for the many to hear, but the more poetic they are, the less should they be heard by boys and men who must be free and accustomed to fearing slavery more than death"

Pois, para Platão, importava a “verdade” e não “imitadores da imagem da virtude”, "shouldn't we set down all those skilled in making, beginning with Homer, as imitators of phantoms of virtue and of the other subjects of their making? They don't lay hold of the truth” (BLOOM, 1991, p.283)

Mas a cidade, o centro urbano, também não era bastante do agrado de alguns poetas, é o que parece no começo. Muitos preferiam o isolamento, o silêncio dos campos, da vida dada à natureza e à paz, para assim poderem escrever os seus poemas. A exemplo, o grande Horácio, Quintus Horatius Flaccus, que preferiu residir na região sabina, perto do Monte Corgnaleto, sob o sossego campestre, visto ter recusado o convite de Augusto, que o desejava como seu secretário. Ao contrário do que Platão afirma sobre os poetas, de eles não se preocuparem com a verdade, Horácio diz em sua Sátira Primeira “Investiguemos seriamente a verdade”. Outros preferiam o cerne das cidades, pois havia nestas, como em Atenas, competições poéticas que davam aos poetas louros, glória, fama.

Pode ser também a cidade uma algaravia, uma babel, uma multiplicidade de sons e imagens, como podemos perceber pelo impactante e intrigante poema concreto-visual do mestre Augusto de Campos:

“Cidade City Cité”

atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubri
mendimultipliorganiperiodiplastipubliraparecipro
rustisagasimplitenaveloveravivaunivora
cidade
city
cité

As cidades dos poetas podem ser tanto reais quais Roma, Atenas e Troia tão cantadas pelos antigos, Lisboa (Fenando Pessoa), Recife e Sevilha (por João Cabral de Melo Neto),  Barcelona (Alex Varella), Rio de Janeiro (por Antonio Cicero), Maceió (por Lêdo Ivo) quanto imaginárias quais Ítaca, Macondo, Atlântida, Pasárgada e muitas outras que o imaginário humano foi capaz de inventar.

Os acontecimentos nas cidades, as pessoas, os lugares, tudo foi, é e pode ser cantado pelos poetas. Até a possibilidade da chegada de bárbaros (que não chegam, para desencanto de todos!) – “Porque é já noite, os bárbaros não vêm” - como fez, com toda a beleza, Konstantínos Kaváfis em seu magnânimo poema “À espera dos bárbaros”. Ou os poetas constatam o modo de vida nas cidades como fez Fernando Pessoa sob o heterônimo Alberto Caeiro “nas cidades a vida é mais pequena”, em “O Guardador de Rebanhos”. Tema para um tratado ad infinitum, decerto. Abaixo um poema que consta em meu livro “Laringes de Grafite (Vidráguas, 2012):

"Eu não sei cantar cidades"



Eu não sei cantar cidades.
A minha é bela.
Que bom para ela.
Possui pássaros tantos
De variados cantos,
Peixes exóticos que expressam ódio,
Pedras que gritam
Pelas pontas dos dedos,
Planaltos de altos e baixos,
Planícies de disse-não-disse,
Becos de palavras distraídas,
Ruas que precisam ser digeridas,
Uma ponte pênsil,
Postes postos em prontidão,
Praças que abraçam alegrias
E graças - Às vezes,
Algum incidente que machuca.
Gente?
Eu não sei cantar cidades...
A minha é bela.
Que bom para ela. 


Ao menos, uma coisa é certa: a maior de todas as cidades, o maior de todos os lugares é a poesia, a própria poesia. Nela tudo pode ser criado, tudo pode destruído, tudo pode ser reconstruído, tudo pode ser  engendrado sob os matizes múltiplos da imaginação, com as palavras escolhidas para serem as melhores, na ordem que parece ser escolhida por elas. É a poesia capaz de “lançar mundos no mundo” como escreveu precisamente Caetano Veloso em sua canção “Livros”.


Adriano Nunes 






quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Adriano Nunes: Quando por si faz-se pleno"

Quando por si faz-se pleno"


(I)

Diz-se que um poema é belo,
Além do que o entendimento
Pode constatar, decerto.
Na rua deserta, um prédio
De quatorze andares, velho,
Luminoso se mantém.
Entre edifícios modernos
E luxuosos, o prédio
De quatorze andares bem
Contém miríades de
Seres que parecem ser
De Júpiter, por exemplo.
Assim, um poema é belo:
Prédio pleno de mistérios.

(II)

Só depois de certo tempo
É que o pensamento vê
Que nada pode fazer
Ante um poema, se belo
For mesmo. É que o pensamento
Quando um poema sopesa
Pensa que o pesa pra sempre.
Não percebe que o poema
É que as sinapses sustenta,
Que mundos múltiplos gera.
Portanto, apenas na esfera
Do que inacessível arde
É que um verso por si vale.
Muito além do que é verdade.

(III)

Agora que na rua adentraste,
Olha para o alto, certo
De que verás vários prédios
Muito altos. Imponentes.
E entre eles um prédio
Velho, com alguns remendos
Estéticos, quase feitos
Há tempos, rimas e metros,
Após releituras de
Pedras e cal e cimento.
A noite esconde os defeitos.
Diz-se que um poema é belo,
Além do empreendimento,
Quando por si faz-se pleno.


domingo, 15 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Amor"

"Amor"



só isso e é um só riso.
é um sorriso.
é um sol isso.
solstício?
sol solto indo,
sol todo vindo
solícito.

só isso e é um só risco.
é um risco só isso.
é o ser misto.
som no mínimo.
som místico.
som mítico.
como é o ser no íntimo?

só isso e é um só ritmo.
é um ritmo-riso.
é um ritmo-risco.
o sol mais lindo:
sol todo vínculo,
sol solto desde o início,
sem fim, é isso:

só isso
dentro de mim.

sábado, 14 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Arte poética"

"Arte poética"


Queres a rima,
Mas ela sangra.
Partes pra cima.
Queres o ritmo,
Mas ele sangra.
Tendes ao risco.
Queres o metro,
Mas ele sangra.
Chegas bem perto.
Queres a folha,
Mas ela sangra.
Quase te açoitas.
Queres o lápis,
Mas ele sangra.
Tanto não sabes.
Queres o verso,
Mas ele sangra.
Estás mais cético.
Queres o tempo,
Mas ele sangra.
Sê todo atento!
Queres o sonho,
Mas ele sangra.
Estás te expondo?
Queres o canto,
Mas ele sangra.
Cansa-te o espanto?
Queres a vida,
Mas ela sangra.
Muito não digas!
Queres o signo,
Mas ele sangra.
Pesas o mínimo.
Queres o corpo
Mas ele sangra.
Queres tão pouco!
Nada adianta.

Adriano Nunes: “Over one hundred verses to Paris of over one hundred dead"

“Over one hundred verses to Paris of over one hundred dead"



Over 100 defenseless dead
We are still tied to beliefs
Over 100 dead on foreign soil
We are still tied to dogmas
Over 100 dead anyway
We are still tied to gods
Over 100 murdered in cold blood
We are still tied to dreams
Over 100 dead - a nightmare!
We are still tied to fears
Over 100 dead - how will we forget them?
We are still tied to fashions that blind
Over 100 dead with their  desires
We are still tied to rules
Over 100 dead –  a serious mistake!
We are still tied to farces
Over 100 dead - many so soon!
We are still tied to pain under sad moon
Over 100 dead – how do we relive them?
We are still tied to rages
Over 100 dead with their secrets
We are still tied to boredoms
Over 100 dead need to be respected
We are still tied to crimes
Over 100 dead - as I see them!
We are still tied to wounds
Over 100 dead in well-aimed shots
We are still tied to risks
Over 100 dead - who are they?
We are still tied to theses
Over 100 dead – how do we retain them around?
We are still tied to fights
Over 100 dead in true hate
We are still tied to signs
Over 100 dead - a bloody day and beyond
We are still tied to myths
Over 100 dead in ourselves
We are still tied to hatreds that are perpetuated
Over 100 dead  - it is a horror to know them as we know
We are still tied to tastes
Over 100 dead - awe and despair!
We are still tied to genes
Over 100 dead – how do I expose them here?
We are still tied to feuds
Over 100 dead - another dark moment!
We are still tied to clauses and hopes
Over 100 dead – which does peace exist for those who feel them inside?
We are still tied to rites
Over 100 dead under cowardly plot
We are still tied to bundles
Over 100 murdered by bombs and bullets - here they are!
We are still tied to blood quotas
Over 100 dead - one by one, we can find
We are still tied to thanks
Over 100 dead - painful realization that hums
We are still tied to modes
Over 100 dead tied to their ideas
We are still tied to castes
Over 100 dead - nothing changes even!
We are still tied to deadlines
Over 100 dead with their advices
We are still tied to conspiracies
Over 100 dead - all of them how can we understand?
We are still tied to cheats
Over 100 dead - in pieces and whole!
We are still tied to trances
Over 100 dead without a right
We are still tied to plans
Over 100 dead – how do we perceive them?
We are still tied to wicked tricks
Over 100 murdered by fast bullets
We are still tied to darkness
Over 100 dead - whom are we able to see them?
We are still tied to complaints that never end
Over 100 dead - who is really human?
We are still tied to realms
Over 100 murdered by customary hatred
We are still tied to cribs that plague us
Over 100 murdered by monsters without mercy
We are still tied to beliefs that dehumanize us bit by bit
Over 100 dead - scattered,  similar in all things now
We are still tied to temples
Over 100 dead – it is a horror to say it to you!
We are still tied to arrows
Over 100 dead - are rough mirrors
We are still tied to swear
Over 100 dead - let us drink this sour poison!
We are still tied to barbs
Over 100 dead - how can I reach them as well?
We are still tied to maps
Over 100 killed by treacherous hatred
We are still tied to masks
Over 100 dead - Atropos and her entourage!
We are still tied to stones that act
Over 100 murdered in animalistic way
We are still tied to apes and shadows
Over 100 dead - how do we apprehend them?
We are still tied to cultural defects and deceptive air
Over 100 dead in Paris of wines and cheeses.
We are still tied to passwords that lead nowhere
Over 100 dead - Red Alert!
We are still bound to errors that do not have repair





Adriano Nunes: "Mais de cem versos para a Paris de mais de cem mortos"

"Mais de cem versos para a Paris de mais de cem mortos"




Mais de 100 mortos indefesos.
Ainda estamos a crenças presos.
Mais de 100 mortos em solo estrangeiro.
Ainda estamos a dogmas presos.
Mais de 100 mortos de todo jeito.
Ainda estamos a deuses presos.
Mais de 100 mortos a frio a esmo.
Ainda estamos a sonhos presos.
Mais de 100 mortos - um pesadelo!
Ainda estamos a medos presos.
Mais de 100 mortos - como esquecê-los?
Ainda estamos a modas presos.
Mais de 100 mortos com seus desejos.
Ainda estamos a regras presos.
Mais de 100 mortos - que grave erro!
Ainda estamos a farsas presos.
Mais de 100 mortos - muitos tão cedo!
Ainda estamos a dores presos.
Mais de 100 mortos - como revivê-los?
Ainda estamos a raivas presos.
Mais de 100 mortos com seus segredos.
Ainda estamos a tédios presos.
Mais de 100 mortos sem um respeito.
Ainda estamos a crimes presos.
Mais de 100 mortos - como os vejo!
Ainda estamos a mágoas presos.
Mais de 100 mortos sob tiros certeiros.
Ainda estamos a riscos presos.
Mais de 100 mortos - quem são mesmo?
Ainda estamos a teses presos.
Mais de 100 mortos - como em vós retê-los?
Ainda estamos a brigas presos.
Mais de 100 mortos sob ódio verdadeiro.
Ainda estamos a signos presos.
Mais de 100 mortos - que dia imperfeito!
Ainda estamos a mitos presos.
Mais de 100 mortos em nós mesmos.
Ainda estamos a ódios presos.
Mais de 100 mortos - que horror sabê-los!
Ainda estamos a gostos presos.
Mais de 100 mortos - temor e desespero!
Ainda estamos a genes presos.
Mais de 100 mortos - como os concebo?
Ainda estamos a feudos presos.
Mais de 100 mortos - que instante negro!
Ainda estamos a termos presos.
Mais de 100 mortos sem paz pra protegê-los.
Ainda estamos a ritos presos.
Mais de 100 mortos sob covarde enredo.
Ainda estamos a fardos presos.
Mais de 100 mortos a bombas e balas - ei-los!.
Ainda estamos a sangue presos.
Mais de 100 mortos - um a um, dói-me sê-los!
Ainda estamos a graças presos.
Mais de 100 mortos - insólito lajedo!
Ainda estamos a modos presos.
Mais de 100 mortos com seus anseios.
Ainda estamos a castas presos.
Mais de 100 mortos - nada é ledo!
Ainda estamos a prazos presos.
Mais de 100 mortos com seus conselhos!
Ainda estamos a tramas presos.
Mais de 100 mortos - como entendê-los?
Ainda estamos a fraudes presos.
Mais de 100 mortos - em pedaços e inteiros!
Ainda estamos a transes presos.
Mais de 100 mortos sem um direito.
Ainda estamos a planos presos.
Mais de 100 mortos - como os percebo!
Ainda estamos a manhas presos.
Mais de 100 mortos por projéteis ligeiros.
Ainda estamos a trevas presos.
Mais de 100 mortos - quem pode vê-los?
Ainda estamos a queixas presos.
Mais de 100 mortos - quem é humano mesmo? 
Ainda estamos a reinos presos.
Mais de 100 mortos por ódio costumeiro.
Ainda estamos a berços presos.
Mais de 100 mortos por monstros sem eixos!
Ainda estamos a credos presos.
Mais de 100 mortos espalhados qual brinquedos.
Ainda estamos a templos presos.
Mais de 100 mortos - que horror dizer-vos!
Ainda estamos a lanças presos.
Mais de 100 mortos - somos toscos espelhos.
Ainda estamos a juras presos.
Mais de 100 mortos - bebamos desse veneno azedo!
Ainda estamos a farpas presos.
Mais de 100 mortos - será que a eles chego? 
Ainda estamos a mapas presos.
Mais de 100 mortos por ódio traiçoeiro.
Ainda estamos a vestes presos.
Mais de 100 mortos - Átropos e seu cortejo!
Ainda estamos a pedras presos.
Mais de 100 mortos de modo animalesco.
Ainda estamos a símios presos.
Mais de 100 mortos - como apreendê-los?
Ainda estamos a vícios presos.
Mais de 100 mortos na Paris de vinhos e queijos.
Ainda estamos a senhas presos.
Mais de 100 mortos - alerta vermelho!
Ainda estamos a erros presos.




Adriano Nunes

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Só o sonho ainda"

"Só o sonho ainda"


Só o sonho singra
Nesta noite mínima.
Só o sonho sangra
Nesta noite quântica.
Só o sonho segue
Nesta noite célere.
Só o sonho suga
Nesta noite múltipla.
Só o sonho some
Nesta noite nômade.
Só o sonho à vida
Nesta noite serve.
Só o sonho ainda
Nesta noite à verve.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Alyulyn irá à guerra"

"Alyulyn irá à guerra"


Nem o sol alto a esta hora.
O deserto parece que goza!
Nem mesmo as ameaças da morte.
Há ilusões bárbaras e mais fortes!
Nem estampadas as fotos
Nos jornais. Nem o povo em volta
A clamar, pedindo, com os olhos,
Que Alyulyn não vá além dos montes
Da Vieróvia, nem toda a História
Com seus relatos frios e torpes,
Parecem convencê-lo do
Grave erro que será, com toda
Certeza, ir para a guerra. Mostram-lhe
Sobre a maca, doentes e mortos.
Mas ele rebate: não me importo!
Mostram-lhe crianças feridas: o troco
Darei! Diz em alta voz.
Mostram-lhe o apelo dos idosos.
Gargalhando diz: é pouco
Para o meu propósito.
Todos do vilarejo pobre
Sabem que Alyulyn é jovem
Demais. Eles sabem que só
Mesmo algo além é que pode
Fazer com que ele desista logo
Dessa investida sem lógica.
Alyulyn apenas ajeita as botas.
Há muito aprendeu com gosto
O manuseio do fuzil. Está louco
Para acertar no inimigo, no
Meio do corpo, no peito, na boca.
Ele não tem mesmo ideia outra.
O sol arde e atesta o jogo
Poderoso que é feito pelo rancor.
O moço sabe que seu inimigo é o outro.
O outro que não tem sua crença, o outro
Que não fala a sua língua, o outro
Que não tem a sua cor, o outro
Que por ser o outro já é de todo
Seu inimigo. O outro que gosta
De ser o outro. O outro que também só
Vê os que lhe são tomados por
Outros. Os mesmos. Os iguais. Os
Que sempre estão dispostos
A ir para guerra por causa do outro.
Para Alyulyn não mais importa
Em que momento, em que hora
O outro será morto. É guerra e pronto.
Para Alyulyn não mais o jogo
Da retórica serve. Qualquer ponto
De vista é sempre evasivo, concorda.
Ajeita a aljava com as balas de aço e ódio.
Ajeita a boina, o cinto e os carregadores.
Alyulyn acha que não é tolo.
Nem mesmo o pranto dos avós.
Nem mesmo os gritos dolorosos
Da sua mãe. Sequer o amor
De Lativova. O único sonho
De pensar que a ele assoma
É o de que a guerra é o único modo
De acabar com o outro, com
Os gostos do outro, com o
Ser outro e só. Por ser óbvio
Que o outro atrapalha os negócios
Do povo de Alyulyn. Até pode
Ser que Alyulyn não tenha sorte
E jamais aos seus retorne.
Colocaram essas sinapses no miolo
Do jovem Alyulyn. Sei que posso
Revelar-vos um segredo mor:
Alyulyn está com medo de ser o outro.
Ah, o desejo mórbido de ser o outro,
De amar o outro, pouco a pouco, o outro!
Alyulyn tem receio de que seu povo
Perceba que ele é o próprio
Inimigo. Sente ser perigoso
Encarar a frio os liames do corpo
E da existência. E, de novo,
Dá gargalhadas - lágrimas? - sob
O pedido minguante do amor
Pelo outro. Alyulyn só
Para trás não mais olhou.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "As ilhas de Vert-Vert" - para Alberto Lins Caldas​

"As ilhas de Vert-Vert" - para Alberto Lins Caldas​ 


O cais de Vert-Vert está lotado.
Nunca se viu tanta gente, dado
Que algo extraordinário, saibamos,
Deve acontecendo estar.
Podemos ver, com atenção e calma,
Que um gigantesco comércio se dá 
Em redor do porto e dos velhos barcos
Pesqueiros. Vert-Vert é uma cidade do mar.
Entregue ao mar. Desde quando
Era só de Cila e de Caríbdis o mar.
Mas, hoje, Vert-Vert, abrira as suas portas para
Uma surpresa inigualável e rara:
Qualquer um poderá ver as
Ilhas de Vert-Vert. As tais
Ilhas que desde a existência da raça 
Eram vigiadas à fúria, a ferro, a fogo e a farpas.
Que haverá nas ilhas de Vert-Vert que faz
Com que de todo o mundo o olhar
Volte para lá? Voltemos os nossos então!
Que essas duas pequenas ilhas têm de mais?
Sim, são duas ilhas pequenas, a
Poucas milhas náuticas
Do cais. O cais que agora é o mercado
Do mundo. Do mundo que há.
Filas e filas. Vendas e vendas. Tantas
Falas. Tanta babel. Quanta ilusão!
De rubis e safiras a íntimas vontades,
Tudo é vendido: alma, corpo, mágoas,
Tempo, sonho, tédio, canto e carne.
Até o amor está à venda no negro câmbio,
À socapa. Deuses são levados
À leilão. Uns são trocados
Por fermento, farinha, feijão e fubá.
Nada está de graça. De enganos caros
Às mais distantes galáxias,
As vendas se fazem mágicas.
E tudo cresce junto ao grande mercado
Do mundo que há: crimes, carmas,
Cartas, custos, crenças, caos, cláusulas.
Presente, passado, futuro,
Vendido é deveras tudo.
Enquanto a vez as pessoas aguardam
Para ir às ilhas de Vert-Vert, mandam
Os guardas que se faça ordem para
Que todos possam chegar lá.
Fichas cadastradas são dadas
A todos. E todos esperanças trazem.
É quase uma da tarde.
O sol incendeia as possibilidades de já 
Haver alguma coisa além válida.
Alguns matam e morrem por causa
Da chance de agora poderem viajar
Para as ilhas de Vert-Vert. Nada
É mais desejado do que a viagem
Que se é permitida depois de vasto
Tempo - talvez o tempo de contar
O tempo que se conhece desde quando
O tempo ainda era manhã na primeira manhã.
Nenhuma coisa importa mais 
Do que  a ida às ilhas de Vert-Vert. Passem
A saber do que há nesse lugar:
Dizem ser mesmo a raridade das raridades:
As raspas da humana dignidade!
É quase uma hora da tarde.
Nada é mesmo de graça.
O mercado ferve, arde.


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Karfdazov chega à Lievryk-Jokkrev"

"Karfdazov chega à Lievryk-Jokkrev"


As apostas são altas, Senhores!
Apostem! Façam as suas apostas
Logo, porque já deixamos
A Górgona furiosa, muito furiosa!
Mais e mais! Apostem!
Quantas víboras há
Na cabeça da velha Górgona
Capturada nas cavernas de Salena?
É isso que está ouvindo
Karfdazov que acabara de chegar
À Lievryk-jokkrev. Pobre Karfdazov!
Da estranha jornada até que se lembra.
Ninguém até hoje, até agora,
Conseguiu contar as víboras
Da cabeça da velha Górgona.
Até agora as víboras vibram
E confundem os que se atrevem
A contá-las. Mas não só!
Uns rapidamente gritam: trinta!
Mal se viram e pedra vingam.
Outros gritam: sessenta!
De repente, nova estátua rebenta.
Outros não têm sequer tempo
De abrir a boca.
O flerte mortal os atinge. Chance outra
Não há. Não há nada adentro.
Pobre Karfdazov! Curioso Karfdazov!
Dizem ser curiosa toda a gente.
Que será que é pago por
Essa loteria sem volta,
Essa álea diabólica? Aproxima-se
Karfdazov da fila para a grande jaula.
A grande jaula escura e silenciosa.
Todos querem ter a sua vez.
Todos querem o prometido prêmio.
Todos dispostos a tudo estão.
Que lhes importa a razão
A dilacerar suas mais honestas ilusões?
Por um instante, treme Karfdazov.
Sabe que estará entre a vida e a morte.
Sabe que só terá uma chance.
Pobre Karfdazov! Como pretende
Enfrentar essa gente que se
Espreme entre as gordurosas grades
Que dão acesso à Górgona de Salena.
De Karfdazov tenhamos pena.
Ele não sabe contar. Ele não sabe
Ler nem escrever. Nem da realidade
Ele sabe qualquer coisa.
Ah, essa gente eufórica que quer
A vida eterna tentando acertar
Quantas víboras há na cabeça da Górgona!
A vida eterna ou pedra.
Karfdazov é o milionésimo da fila.
Comprou um saco de pipoca.
Sabe que chegará a sua vez.
Sabe que terá a sua chance.
Ele sente que seguirá as instruções.
Ele já imagina quantas víboras
Há na cabeça da Górgona de Salena.
Karfdazov sabe que a fila segue
E, contente, come pipocas.
Vejam como a fila aumenta e segue!
Alguém gritou: quarenta!
Eternidade ou pedra - que importa?

Adriano Nunes: "Lilikova e os dragões de Azurkdir" - para Mariano

"Lilikova e os dragões de Azurkdir" - para Mariano


Não estamos no circo de Lielev.
Não estamos à espera de pão e festa.
Não estamos à espera do Chefe
Da tribo das Grãs Serpes.
Estamos deitados ao lado de
Lilikova, esperando, com ela,
Os dragões de Azurkdir, três
Deles que darão sinal na janela
Do quarto quando a vida se fizer leve.
Não estamos nos Vales dos Desejos.
Não estamos à espera de caos e frevo.
Não estamos à espera do Chefe
Da nossa tribo que foi ferido mesmo
Pelos seus editos que pra nada servem.
Estamos acampados no devir, sem pressa,
À espera, com Lilikova, dos três
Dragões azuis que virão do Esquecimento.
Lilikova nos disse que os tem
Para sempre. Nós acreditamos que
Para sempre também teremos
Os três dragões. Sempre para sempre.
Lilikova está impaciente.
E isso nos deixa impacientes também.
Perguntamos à Lilikova se
Os dragões como a gente nomes têm.
Ela responde: não têm! Eles não têm!
Perguntamos à Lilikova se eles
Têm fome como a tem a gente.
Ela responde: não têm! Eles não têm!
Perguntamos à Lilikova se eles querem
O mundo como nós queremos.
Ela diz sem receio: de nenhum jeito!
Perguntamos se sabem eles do tédio.
Ela ri e nos diz: eles não levam nada a sério.
Perguntamos se eles elegem
Chefes e dão-lhes poder para serem
Governados. Ela fala abertamente
Que eles são livres desde que
Devoraram as próprias crenças.
Não estamos nas montanhas de Lielev.
Não estamos à espera de vãos e frestas.
Já se passaram alguns séculos
E continuamos à espera
Dos dragões de Azurkdir. Não devem
Demorar mais. Lilikova nos tenta
Convencer. Ela sempre nos convence.
Amanhã talvez cheguem os três
Dragões azuis. De uma vez. Os três
Dragões de Azurkdir. Ou na primavera.
Quando os crisântemos estiverem
Abertos para possibilidades estéticas.
Lilikova parece que quer
Fechar as janelas. Temos medo de
Perguntar se os dragões não mais vêm.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Kalininka e Mretieva brincam na lama"

"Kalininka e Mretieva brincam na lama"



Kalininka e Mretieva brincam
Na lama, sozinhas.
Não sabem de onde vieram
Tanto lixo, tanto barro molhado.
Sabem que estão sozinhas.
Mas não sabem que são 
Os restos descartados
Da enxurrada, após ruir a
Barragem. Sequer sabiam da
Existência de uma barragem.
Elas  não estranham não poder ver
Onde se fincam as suas casas.
Tudo é lama e destroços.
Elas não sabem que os dois  mortos
Que levados são pela corrente
De argila e falha e politicalha 
São seus pais de fato. 
Kalininka, com cuidado, limpa
A face de Mretieva.
Elas sorriem. São pequenas ainda.
Por que será que escaparam
Do desastre? Por que se melam
Com argila e esquecimento?
Agora, passa um cão sem asas.
Um meio gato que era gato, decerto.
Olhem lá, observem bem, 
O Sr. Trukov emerge do nada!
A Sra. Walenikova está sem os seus 
Óculos importados, arrastada 
Sendo pelo lodo sujo severo.
Pensam ambas as meninas:
Devem estar brincando qual elas.
Kalininka e Mretieva cansaram
Da brincadeira de fingir
Que não há apenas
Elas duas ali.
E sorriem. E andam atoladas 
Na lama como se patas
Tivessem. E tropeçam.
Os helicópteros no alto!
Dizem juntas: eles também 
Querem brincar no barro!
Elas não podem entender
Que tudo não passa 
De um jogo baixo, nefasto.
E que, por baixo do barro podre e mesclado,
Seu vilarejo desaparece.
Os vestígios denunciarão os culpados.
A vida ferve!
A tristeza denunciará os culpados.
A lida não é leve!
A dor denunciará os culpados.
A lama já os molda - tudo é rápido!
A barragem desgastada
Denunciará os culpados,
Cedo ou tarde. Qual mágica.
Tudo é mesmo emendado!
Os corpos destroçados apontarão 
Para os culpados. 
Tudo é mesmo lama!
Até os bichos soterrados
Já soletram bem os nomes de todos
Os culpados. Os culpados!
Kalininka e Mretieva brincam, sozinhas,
Na lama, cansadas 
De ver que só há lama. Não veem as lágrimas
Que delas saltam?
Lágrimas e lama. E lembranças.
Assim é o caos, assim é o nada.
Só Kalininka  e Mretieva não sabem
Que somos todos os culpados.

Adriano Nunes: "Os tesouros da Duquesa de Zert"

"Os tesouros da Duquesa de Zert"


Avisam pergaminhos e trombetas
Que a Duquesa de Zert
Chegará muito em breve
Ao convulsivo cerne
Da cidade. Que vem
Trazendo as novidades doutras terras
Distantes e não vistas pela gente
De Zert. Que vem contente
Porque acredita ser
A legítima herdeira
Do mundo antes de
Zert. Que louca parece
Estar, pois fala que
Além de Zert há bens
Bastante valiosos, reluzentes.
Fala que são dois esses:
Liberdade e silêncio.
A vida está em festa.
A Duquesa de Zert
Ouro outro e tesouros não quer mesmo.
Andam contando que
Seus olhos foram feitos
Pérolas para um Chefe
De algum Estado pra lá das fronteiras.
Que ela nada enxerga.
Por isso espalha que demais conhece
Os bens de que defende.
Observemos atentos!
A Duquesa de Zert boca não tem!
Como poderia falado ter
Sobre tesouros desse
Jeito? Através de gestos?
Mas as gentes de Zert
Não são assim espertas
Para entender de gestos.
Atentos observemos!
A Duquesa de Zert
As mãos - não as tem mesmo!
Alegam alegres os vários velhos
Que as mãos cortadas lhe
Foram, porque, até versos
Escrevia! Até versos!
Observemos despertos!
A Duquesa de Zert
Não está triste e nem
Estar triste pretende.
Ela não tem orelhas!
Por muito que gritemos,
Será perda de tempo.
E nada mais a fere.
Não há tato! É sem pele!
Avisam pergaminhos e trombetas
Que a Duquesa de Zert
Chegará logo em breve
Ao corrosivo cerne
Da cidade. Que vem
Dois grandes bens trazendo:
Liberdade e silêncio.
Observemos espertos!
Ela traz consigo, dentro
Da aljava a alma, a boca, as mãos e os versos.
E os seus olhos a seguem
De perto. Com a pele.
Decerto. Nada a fere.


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Quase quadrilha"

"Quase quadrilha"


Estão todos à espera
De um amor, da quimera
Rara. Será que tarda?
À espera de Eduarda,
Erasmo escreve versos.
Coitado! Pois imerso
Neles acredita amado
Ser. Mas é mesmo ao lado
De Fábio que estar quer
Eduarda. Qualquer
Uma para Fábio serve.
Seu gostar é tão breve!
Porém dizem que ama
Do fundo d'alma Ana
Que ama Antônio tanto
Quanto ama, pra espanto
De todos, Catarina
Que nisso não atina
E segue a amar Renato
Que ama Lea de fato
Que ama Leonardo
Que constata ser pardo
À noite todo amante e
Que almeja amar Dante
Antes que ele case
Com Lara. Nessa fase,
Sabe-se que o poema
Passa por um problema
De conclusão: ou finda
Sem um par certo, ainda
Que seja só mistério,
E o amor levado a sério
Não seja, ou segue bem,
Achando enfim alguém
Que ame Erasmo, dado
Que este está preocupado,
E, à espera de Eduarda,
Que quer que tudo arda,
Escreve agora cartas.
Basta! Como estão fartas
As tragédias diárias!
Que solidões hilárias!
Estão todos à espera
De um amor, da quimera
Mágica. É tudo ou nada!

domingo, 8 de novembro de 2015

Maxwell Bodenheim: "Young Poet" (Tradução de Adriano Nunes)

"Jovem poeta" (Tradução de Adriano Nunes)


O clamor sorridente em tua face
Fenece de repente, por momentos:
Timidez e ousadia
São varridas, mudadas, uma contra a outra.
Mas a clara baderna
Uma vez mais, rejeita a si com troças
Que iluminam suas mãos inquietas.

Quando bastante dor tem reduzido
As pálpebras do teu estado de espírito,
Humor pacífico encobre-te a face.
És como um velho homem
A ver crianças que voam de seus dedos.
Em teu manto de cosmos emprestados
Achas tristeza atraindo os teus horizontes
Dentro de brilho incerto
Quando a noite recorda, consertaste
Dentro da furtiva, raivosa calma
Dedilhado-a primeiro, flecha não lançada.


Maxwell Bodenheim: "Young Poet"


The grinning clamour on your face
Dies abruptly, for moments:
Boldness and timidity
Are swept, transfigured, against each other.
But the glistening turmoil
Once more spurns itself with jests
That light its troubled hands.

When too much pain has lowered
The eyelids of your mood,
A peaceful humour wraps your face.
You are like an old man
Watching children fly from his fingertips.
In your kirtle of borrowed skies
You find a sorrow luring your horizons
Into hesitating brightness. . . .
When night remembers, you have straightened
Into stealthy, angry calmness
Fingering it first, unsent arrow.



BODENHEIM, Maxwell. Selected Poems of Maxwell Bodenheim 1914-1944. New York:  Beechhurst Press / Bernard Ackerman; First edition, 1946.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Um pouco até mais se só"

"Um pouco até mais se só"


Exige tudo de tudo,
Tudo o quanto pode tudo.
Um pouco até mais se for
Devido a questões de amor.
Exige muito, no fundo.
Desse modo é mesmo o mundo.
Um pouco até mais se só
For desatar justo o nó
Desse amor que se quer único.
Tudo enquanto tudo - o único
Gesto possível de cor:
Amalgamar-te a amor mor.
Porque ser tudo é inútil.
E a Arte é tudo, é inútil,
E exige tudo. O melhor!
Metro e mistério em redor.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "De tudo" - para Antonio Cicero

"De tudo" - para Antonio Cicero


Agora
Nem eu
Nem ela.
Bebemos
Do mesmo
Veneno.
Estamos
Em mar
Altíssimo,
Num barco
Sem velas,
Sem bússola.
Eu que
Sonhava
Com tantas
Palavras
Tão minhas.
E ela
Que se
Queria
Tão bela,
Tão dela,
Sem dúvida.
Às vezes,
Mesquinha!
Guardando
Pra si
As rimas,
Os ritmos,
Metáforas,
Anáforas,
Antíteses,
Sinédoques,
Elipses,
Silepses,
Segredos
Sentidos,
Silêncios.
Eu, dentro
De mim,
Tentando
Sondá-la,
Domá-la,
Cortar
As asas.
Pra nada.
Pois bem:
Estamos
Assim,
Um sem
O outro.
Se digo
O nome
Que ela
Tem, logo
Um pé
Quebrado
Surgir
Viria,
Ferindo
A métrica
Que fiz
Pra ser
Feliz.
Que ouso?
Em que
Daria?
Não tem
Nenhum
Problema:
Poema
Que é
Poema
Precisa
Apenas
De tudo
Que é

Poesia



quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "O amor de Alyuska Petrova"

"O amor de Alyuska Petrova"


Estamos em um pequeno quarto
Localizado no inalcançável corredor
Do Castelo de Artvyleviev.
Quase é impossível de
Chegar lá. Essa façanha, digo-lhes,
Consegui por causa de um liame sináptico.
Mas deixemos isso de lado,
Por enquanto. As paredes do quarto
Têm mais a contar-nos.
Uma vez, a cada século,
Uma jovem princesa fica uma semana
Inteira trancafiada nessa alcova.
O que ela faz? Ela escreve cartas de amor?
Quem será que ela demais ama?
Para quem escreve? Esse é o mistério!
Nunca se viu nada nem de algo se soube
Para quem Alyuska Petrova
Faz as tais cartas.
Hoje é o sexto dia. Já é noite.
Parece certo que verei
O conteúdo desses escritos.
Sim, e dir-lhes-ei o que
Há em cada linha, em cada
Signo se tudo for cognoscível.
Os antigos boatos, tantos boatos,
Alegavam que a princesa estava
Amando a mando do seu coração.
Pelos primos rabiscos que já li
Disso não duvido -
As astúcias do coração muitas são!
Alyuska deve mesmo estar amando.
O amor parece-lhe, entretanto,
Um labirinto. Apenas isso.
Por que Alyuska Petrova
Só vai ao quarto a cada século?
Será um fantasma que quer
Prestar as contas com Eros?
Mas não existem fantasmas.
Alyuska também não existe.
Só o amor de Alyuska ainda existe decerto.
Porque é a única coisa que dura
Infinitamente, dentro ou fora
Da mente. Alyuska escreve
Para o seu amor que é o próprio
Amor, o amor sem ser negócio.
Alyuska não há mesmo.
Resta apenas a pena e a folha em branco
E tudo por escrever. Tudo.
A cada século sonhamos
Que Alyuska Petrova volta ao quarto
Para que fiquemos intrigados
Com a possibilidade de amor haver.
Para que tenhamos futuro.
Porque dependemos desse
Futuro ainda bruto,
Latente, a corroer o sempre.
Para que fiquemos amalgamados
Na possibilidade de haver amor.
Amor que tem as chamas mantido
Nas lareiras e nos incêndios do íntimo,
O amor desesperado das horas
Que poderiam existir sem amor,
O amor incontido.
Ou o que reina absoluto nos livros.
Nos versos. Nos olhares. Qual pólvora.
Realmente não existe Alyuska Petrova.
Existem sombras e alegria.
No entanto, o corredor infindo
Do Castelo de Artvyleviev
À espera de Alyuska segue.
Estamos no sexto dia. É noite.
Do amor ninguém nada soube.
Que do amor alguém saberia?
Que, ao menos, seja o amor leve.



Adriano Nunes: "Quantum"

"Quantum"



Um pouco
De algum corpo,
Pra ser um outro.
De algum gozo
Um pouco
Só.

Solto
De nós,
Só meu olho
Quer ver de novo.
Só meu olho
De nós
Solto.


As sobras
Desse amor
Que está exposto.
Desse amor
As sobras
Só.

Adriano Nunes: "As minas de Krikev"

"As minas de Krikev"  



Há uma fila infinda na entrada pra Krikev.
Há uma algaravia convulsiva.
Krikev voltou a ser aquela
Vila onde a vida se fazia plena e bela.
A fama de Krikev  às minas se deve.
São inúmeras minas de um suposto minério antigo.
Os jornais do mundo atestam que
As minas levam direto ao inferno
E que é de lá dos confins do Hades
Que vem o tal minério.
Não levemos esses meios midiáticos a sério!
Os mais audazes contestam essa tese.
Afirmam que as minas dão em nada,
Que é uma ilusão solidária.
E que, por causa disso, 
Chamam o produto delas de Tempo.
Na cotação do mercado, 
Seja qual mercado for,
Tempo está muito valendo.
Uns preferem chamá-lo 
De Infinito. Outros de Vazio.
Uma miríade de técnicos chama de amor.
Os cientistas ainda não 
Sabem como será o nome de fato.
Perturba-os ver que o fruto
Das minas serve para tudo
E, concomitante, para nada.
Todos querem ter a chance de ter
Um pouco de Tempo. 
Todos tentam no mercado negro
Comprar migalhas de Infinito
A qualquer preço.
Todos tentam furtar partículas de Vazio.
Todos tentam esconder o pó de Amor,
Sob as blusas, sob as calças, sob
As indetermináveis vestes da alma,
Para burlar os rigorosos guardas.
As minas de Krikev têm suas regras.
Preenche-se uma estranha ficha.
Nomes e dados de família são desnecessários.
Qualquer outro dado qualificativo
É demais desnecessário.
Seus administradores querem só 
Saber dos sonhos de cada 
Um que se aventure na busca de Tempo.
Feito o rápido cadastro,
As pessoas às minas são lançadas 
Como se fossem iscas.
À mercê dos acasos sub-reptícios
A existência de tudo fica.
As pessoas são numeradas.
Elas parecem que estão felizes
Sendo iscas. Os burocratas dizem.
Elas parecem querer a todo custo
Encontrar um Vazio. Ou grãos de Infinito.
Migalhas de Amor. Restos de tempo,
Conforme o nome que adotem.
A verdade é que as minas trouxeram 
Para Krikev um desassossego vasto.
Todos querem ser fichados
Para ter aos báratros acesso.
Até os bichos e as plantas
Fazem diariamente plantão 
Para ver se também terão 
A oportunidade de ter uma raspa
Do imponente minério.
Há pouco houve um protesto 
Das águas correntes.
Esse tesouro insólito parece
Que pode transformar qualquer coisa
Em qualquer coisa distinta.
Esperam bichos e plantas e pedras
A vez de não mais serem o que são.
As minas de Krikev atraíram mesmo 
Até os deuses! Dizem que estão na fila 
Esperando com senhas nas mãos.
Ah, que atrito na fila vinga!
Os deuses não se conformam, 
Pois em seus cadastros é exigida
Uma prova concreta de que existem 
E de que falam fluentemente 
Grego, latim, chinês e a língua das Arábias.
Uns fazem algumas trapaças,
Mas logo o fiscal chefe das minas desmascara 
O empreendimento que se pretende divino.
São vinte para as cinco da madrugada.
A fila só cresce. Cresce.
O minério de Krikev 
Para tudo serve. Para nada!
Tu, leitor astuto, surpreender-te-ias
Se te dissesse que a pepita rara
É a Poesia?




segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "As fronteiras de Lamur-Tarkiv" - para Ricardo Silvestrin

"As fronteiras de Lamur-Tarkiv" - para Ricardo Silvestrin


São velas alvas que se arriscam
No mar altíssimo das expectativas.
São velas velozes que vão livres.
Vê: são velas que querem ir
Além das fronteiras de Lamur-Tarkiv.
Mas por que querem partir, digo,
Querem fugir, atirar-se ao perigo
Dos abismos elípticos
Das folhas em branco, das forças do destino,
Das forças armadas de algum mito
Peremptoriamente nocivo?
São velas ao vento seguindo.
Sim! Observa bem! É nítido
Que agora estão passando por Ítaca.
Elas não sabem que estão passando por Ítaca.
São velas vestidas de sol perdidas.
Querem ir além de Lamur-Tarkiv.
Querem apenas além ir.
Rotas? Não lhes importam o mínimo.
Reinos? Que lhes importam? Repito:
São velas a vagar além das divisas.
Não sabemos ainda
Por que seguem soltas e unidas.
A lida de todos em que implica?
São velas que fogem de algum conflito?
São velas que velejam a algum risco.
Dizem que estão há muitos dias
Almejando uma saída
Do labirinto que é o mar de Lamur-Tarkiv.
São velas em busca de ritmos precisos,
São velas em busca de rimas.
Dizem que estão navegando em círculos.
Mas não acredito. Não, não é possível.
Lamur-Tarkiv será que é um vestígio
Do que não se quer do íntimo?
Será que fora saqueada pelos ritos
Do inconsciente desconhecido,
Pelas áleas aliciadoras de algum signo
Ainda não descrito, ainda
Não concreto, cognoscível?
São velas de mágicos matizes.
São velas várias que vivas vingam.
Elas parecem estar aflitas.
Não, ninguém dizer saberia
Que rumo certamente têm esses navios
De palavras e sentidos inatingíveis. Ao infinito?
Ah, essa insólita tentativa
De encontrar a poesia!

Adriano Nunes: "Lírica"

"Lírica"



Nos braços, carrega-me, Euterpe,
Para o fluir da tua flauta.
Sê, aqui, uma vez, incauta.
Com notas, doma e dá-me a Serpe,
Para que eu possa imergir
Em mim, agora: a vida ferve!

Nos braços, carrega-me, Erato,
Pra os liames da tua lira.
Antes que a Fortuna me fira.
Com tons, assome e dá-me o exato
Ritmo, um nome para louvá-lo,
Assim, atira-me ao devir.

Nos braços, carrega-me, Tália,
Pra as mímicas da tua máscara.
Vê, por sorrir, já é amá-la?
Com risos, longe atira a amarra,
Para que eu possa das áleas,
Sim, esquecer que a vida é breve!

Nos braços, carrega-me, Clio,
Para os precipícios da História.
Serve-te de mim, sem demora,
Para que eu aprenda, a fio,
A dor da perda e, a vez da glória.
Enfim, mostra-me como agir.

Nos braços, leva-me, Calíope,
Para a tua eloquência alegre.
Faze-me reverter as ordens
Bárbaras, com o sol da fala.
Percebe bem: tudo nos rege
Sem fim. Que palavras são leves?

Nos braços, leva-me, Polímnia,
Para a tua grã geometria,
Para a tua sagrada verve.
Ensina-me os hinos, anima
O meu âmago. Que seria
De mim, sem o verso medir?

Nos braços, leva-me, Terpsícore,
Para os passos da tua dança,
Para os giros e rodopios
Da Arte. À lira o plectro lança,
Para que o som saia mais forte.
A mim que ainda mais compete?

Nos braços, leva-me, Melpômene,
Para a tua clava e grinalda,
Pra aprender a tua tragédia,
As tuas tantas leis estéticas.
A proeza já me consome.
Ao fim, faze-me persistir!