quinta-feira, 26 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Como se tudo ficasse, ali, só, no quarto"

"Como se tudo ficasse, ali, só, no quarto"


Após o extenso fim da última sessão
De desassossego, o meu coração já não
Tem mais por que bater, assim, desesperado,
Como se tudo ficasse, ali, só, no quarto

Escuro das saudades corrosivas, vivas
Lembranças de um instante grácil, mesmo dádivas
Que vingaram e agarraram-se na esperança
De torná-lo eternizado pelo que alcança.

Depois de arquitetado o estético espetáculo
Das chances demais tímidas, pouco a alegria
Servira. Agora, dize-me, Amor, o que faço?

Seria interessante supor quanto amado
Sou, deixando à existência incontestável dado:
O máximo de incertezas a cada dia.

Adriano Nunes: “Escombros”

“Escombros”


Não sei o que em meu ser arde mais e mais.
Não sei se no corpo quero tanta paz.
Já me peguei preso a liames banais.
Já me desfiz em versos e em tristes ais.
Agora não olho mesmo para trás.

Nunca sei o que em mim demais me distrai.
Talvez o corpo seja um porto ou um cais.
Já me transei sendo mais do que um rapaz.
Já me refiz em canções e sons totais.
Agora só me importa o que bem me faz.

Não sei se meu ser tem nas mangas um ás.
Quem sabe o corpo queira ser mais voraz.
Já me dei a quem de amar não foi capaz.
Já me fiz outros sendo, com vasto gás.
Neste instante somente o devir me atrai

Adriano Nunes: "Em mim"

"Em mim"


Div ido o
De vir
Dev ido

Com o
Por vir
Por isso

Sou sol-
To e ou-
Tros ou-

So ser
Sou to
Dos sim

Pra ser
Fe liz
Em mim

Adriano Nunes: "Ter amor para engendrar mais vida"

"Ter amor para engendrar mais vida"


Abrir bem os olhos do porvir.
Deixar que o horizonte o pensar leve,
Para onde a dor dá-se mais breve.
Desafiar o infinito enquanto
Tudo se verte em quântico canto.
Sonhar. Pôr nas magnas mãos do sonho
O batuque do coração. Pronto
Para a luta de cada manhã
Estar. Nenhuma batalha é vã.
Ter amor para engendrar mais vida.
Não ter medo de encontrar saídas.
Estar disposto a ir por aí.
Arriscar. Dar graças ao devir.

Adriano Nunes: "Razão"

“Razão”


Eu não quero em minha face
O riso escancarado dos que comemoram
A prisão de seres humanos.
Sei que eles são tantos. São tantos!
Eu não quero em meu peito
O estufar de músculos da arrogância
Dos meritocratas tupiniquins.
Eu não preciso dos seus pódios e louros!
Só os tolos são cheios de si!
Eu não quero em meu âmago a indiferença sartriana
Ante as violações dos direitos fundamentais.
Eles são inúmeros e são os tais.
Eu não quero as nefastas alianças heideggerianas
Infestando a minha luta cotidiana.
Eles são múltiplos e não se cansam
De ser os homens de bem, os bacanas!
Eu não quero em meu ser a estupidez virulenta dos racistas.
Eles são invisíveis até! Não brincam
Em serviço! São sempre racistas!
Eu não quero o silêncio hipócrita
Dos que amam o eterno status quo
Apenas porque se beneficiam dele,
Enquanto padece uma miríade de vidas.
Eu não quero em meus olhos
As lágrimas dos tiranos e dos carrascos.
Eles estão por todos os lados!
Eu não quero dos assassinos os propósitos.
Eles fazem da morte negócio!
Eu não quero em meu coração
As batidas aceleradas dos traidores e dos que tramam
Para que tudo dê sempre errado.
Eles amam, à socapa, os vis conchavos!
Eu não quero o impulso selvagem dos estupradores de esperanças.
Eles em bando até andam!
Eu não quero em minha língua o analfabetismo
Inibitório dos políticos corruptos.
Eles veneram os cidadãos burros!
Eu dispenso o mundo dos sanguinários.
Eu repudio a autoridade dos autoritários!
Eu não quero o ódio panfletário dos haters tecnoligoides
Atando-se aos meus sentimentos.
Eles estão agindo neste momento
Contra tudo que podem!
Eu não suporto as verdades convenientes
Àqueles que mandam e desmandam.
Eles se espalham, com artimanha!
Eu não quero a vingança dos rancorosos
Impregnando o meu pensar.
Ah, eles se fincaram em todo lugar!
Eu não quero o poder dos egoístas.
Eu não quero a truculência dos trogloditas.
Ah, eles cercam todas as saídas!
Eu não quero em meu espírito quaisquer vestígios
De barbárie e fascismo.
Ah, que o meu querer me queira crítico!

Adriano Nunes: "Para ser feliz"

"Para ser feliz"


Talvez seja melhor
Ficarmos aqui
Sob os incêndios do desejo
Que nos põe à prova

Não sei se o amor
Tem força
Para seguir
Sozinho, inteiro.
Qual é a nossa?

Só sei que, seguindo,
Já nos salva do agora
Do que vinga infindo
Lá fora

Talvez seja melhor
Voltarmos a rir
De tudo que nos poda

Não sei se o amor
Para ressurgir
Tem lógica

Só sei que amar importa
Importa agora
Abrir todas as portas
Para ser feliz

Quem sabe sob o fulgor
De uma supernova

Adriano Nunes: “Para tudo e nada”

“Para tudo e nada”


Tento decifrar-me.
Nunca sou só alma.
Nunca sou só carne.
Já tive alguns eus
Pra ver que doeu.
Já me livrei de mágoas.
Como ser mais meu?
Sei o que me alarga.
Agora vivo, assim,
Mesmo atado a mim
Para tudo e nada.

Adriano Nunes: “Que cantam os poetas, nesta noite?”

“Que cantam os poetas, nesta noite?”


Que cantam os poetas, nesta noite?
Será que fazem versos bem medidos
Para os tantos sonetos? E, iludidos
Com a vã invenção, percam a noite,

Sem perceber direito quão é linda
A lua, ali, liberta até da noite
Que se esvai, entre estrelas, mera noite,
Que se veste de treva e truque ainda?

Que cantam os poetas, neste instante
De silêncio e sossego, que mais pôr
Querem na folha alva além de amor?

Será que estão cansados de supor
Que as noites são iguais, que apenas ante
A criação, a noite é noite, e errante?

Adriano Nunes: “Ó, Vernáculo!”

“Ó, Vernáculo!”


Nesta noite,
Outra noite
Vem da verve
E já serve
De matéria
Para o verso.

Que em mim meço?

Talvez seja
Desta vez
Que a voz verta-se
Em vontade
De ser mais
Do que voz.

Nada é certo!

Nesta noite
Outra noite
Vem à tona.
Álea e absurdo.
Tudo é tudo.
Que me assombra?

Ó, mistério!

Mas, aqui,
Do meu quarto,
O silêncio
Vinga adentro e,
Qual semente,
Faz sentir.

Ser é sério!

Com grã sede
De infinitos,
Esta Língua,
Sol do Lácio,
Dá-se a ti,
Ó, Vernáculo!

Que mais quero?

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Adriano Nunes: "São Jorge"

"São Jorge"


São Jorge,
Guerreiro,
Não sei
Se há
Dragão

Na Lua.
Há mesmo?
A minha
Cabeça
De ingênuo

Menino,
O dia
Inteiro,
Pensava
Que sim,

Ainda
Que não.
Agora
Que já
Cresci,

Diz que
Ninguém
Tem mesmo
Tamanha
Razão,

Que todos
Nós somos
- que feio! -
O atroz
Dragão.

Adriano Nunes: "Ars poetica" - para Fabio, poeta.

"Ars poetica" - para Fabio, poeta.


Eu sou de sol. Às vezes vou do verso
Heroico ao concreto, quan

Do menos espero.

Salto do ser a cada manhã
Para não mais ser o
Que em mim mais encarcero.

Às vezes, sou per-verso e
Só a lira de Erato quero.
Só a lira.

Nunca a certeza
Decerto. É ver o. O ver est
Ético.

Só a lira à vera.
Um ver. Um ever. Um ever est.
A verve me salva e me serve.

A vida é vã
Até no divã.
É sério.

É rio, se
O mar de
Metáforas e memórias noves fora

O meu ser recebe
De âmago aberto.
O meu ser-sede cede.

Do ego
Menos espero.

Adriano Nunes: “O mestre peripatético”

“O mestre peripatético”


Talvez, não seja
Tarde, mas certo
Parece ser,
Pois eis o mestre
Peripatético
A seguir sem
Que ninguém lhe
Imponha regras,
Na terra helênica.

São só três e
Meia, em Atenas.
Olho pra o além
Do pensamento.
Tudo é intenso!
Sinto tremer
O mundo. Apenas
Sei que já tem
A data certa

Pra ser, de um rei
Futuro, o seu
Preceptor. Segue,
Levando a Ética.
Mais perto dele
Chegar eu tento.
Há outros, sempre.
Há tantos, entre

Os que querendo
Estão também.
Ah, sim, talvez,
Amanhã cedo,
Consiga vê-lo
De novo. Nesse
Lugar em que
O povo tem
À voz direito.

domingo, 22 de abril de 2018

Adriano Nunes: “Que se espera de um soneto?”

“Que se espera de um soneto?”


Que se espera de um soneto?
Que tenha até braço ou pé,
Que por aí salte alegre,
Que ao leitor jamais se entregue,

Que enigma ou Esfinge seja,
Que diga o que mais diz sendo,
Que não diga nada mesmo?
Que se espera de um soneto

Que de redondilhas feito
Seja, e finde sem dizer
A que veio, intacto até,

Qual metro e ritmo ter deve,
Se infindo vinga, se breve?
Dos seus versos, que se quer?

Adriano Nunes: “Chove sobre a cidade deserta”

“Chove sobre a cidade deserta”


Chove sobre a cidade deserta.
Tenho saudades inconfessáveis.
Tenho tristezas que até têm pressa
Em ser tristezas que até têm pressa
Em deixar-me triste, triste mesmo.

Ah, chove à beça sobre a cidade!
Que cantam os segredos? Que fazem
Os amantes cegos ante o efeito
Do vento frio que o quarto invade?
Será que alguém faz versos também

Nesta hora em que chuva e eus há?
Estará preocupado com métrica,
Riscos, rimas, ritmos, se leitor
Haverá pra o que emerge do escrito
Lírico? Será que as Musas já

Virão do Infinito, em bando, alegres,
Para ouvir o que restou do cerne
Da memória e dos ecos do amor
Líquido, advindo de cada pingo?
Chove... E em mistério tudo se verte!

Adriano Nunes: “Nó frágil”

“Nó frágil”


À espera
Do beijo,
Só veio
O abraço

Formal,
Tão rápido,
Normal,
Tão frágil.

Depois,
Desejo
De mais
E mais.

Agora,
Das dez,
Já passa!
Que faço,

Se o laço
Do amor
Deu um
Nó falso,

Prendendo
Só mãos
E pés,
Mais nada?

sábado, 21 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Felicidade" - para Saul Tourinho Leal (por seu aniversário)

"Felicidade" - para Saul Tourinho Leal (por seu aniversário)


De Brasília
À África.
Perto
Ou longe,
Por onde
Vai, passa,
Proclama,
Debate,
Defende,
Constata
Que, sim,
Há um
Direito
Legítimo
A ser
Feliz,
No mínimo.
Do Piauí
Até aqui.

Adriano Nunes: “No Porto da Barra” - para James Martins

“No Porto da Barra” - para James Martins


No Porto da Barra
Na porta da praia
Olhares que vagam
Andares que passam
Alheios sol alma
A areia e o mar
Vocês de mãos dadas
À toa e tudo já
Há entre o pensar
E o amor mor que raia.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Já semente sendo"

"Já semente sendo"


De onde o eu vaza?
Do silêncio
Das sinapses, 
Do pulsar
Do pensar que parte,
Do que há
Por trás da verdade?

Pra onde o eu vai?
Pra o longínquo
Da alegria gasta,
Pra o infinito
De cada palavra,
Pra o que invade
Mais adentro?

De tanto ir, vir,
De porvir,
De dar-se ao devir,
De à verve ligar-se,
Eis o eu aqui,
Já semente sendo
Do existir.

Adriano Nunes: “De versar-te em mim”

“De versar-te em mim”


Madrugada sem
Teu calor, meu bem.
A saudade vem
Forte e mais e além.

Que fazer pra ter-te
Para sempre, parte
Do que há, pra dar-te
O olhar do olhar, ser-te?

Posso ver-te, assim,
Com verve sem fim:
Ah, desejo, enfim,
De versar-te em mim!

Adriano Nunes: “Na noite alta”

“Na noite alta”


Na noite alta,
Não sou mais eu.
Perdi-me. Deu
No que deu. Nada

Para lembrar,
Nem mágoa. A paz
Não me refaz
Faz tempo. Já

Não sei sonhar
Donde estou eu.
Que se perdeu
Dentro do mar

Do acaso? Falta
De quê? Bem faz
Ser perspicaz.
Ah, língua amada!

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Cheio de dias só seus, como no início"

"Cheio de dias só seus, como no início"


Exterminaram quase todos os índios.
Para ter da decência o mínimo mínimo,
Inventaram um dia pra eles, digo,
Todos os outros, de domingo a domingo,

Roubaram-lhes. Nada mesmo resta, visto
Que até reservas lhes querem tomar, isto
Quer dizer: como o Estado tem sido omisso!
Da madeira aos minérios, tudo é litígio.

Talvez, este soneto, sem ritmo fixo,
Feito com onze sílabas, com afinco,
Possa dar-lhes pequeno sol e estímulo

Pra lutar por um cosmo próprio, nativo,
Cheio de dias só seus, como no início,
Sem nunca precisar de direito escrito.


Adriano Nunes: "Tribos em mim se acham"

"Tribos em mim se acham"


Demorei muito para
Ver índios cara a cara,
Ainda que já saiba
Que átomos de várias

Tribos em mim se acham.
Deram-lhes dia, mas falta
À vez ver que não basta
Um só, para ter alma.

Roubaram-lhes palavra,
A cultura e o que salta
À mente: gesto e graça,

Pesca, cultivo, caça,
A identidade brava.
Ah, violência nefasta!

terça-feira, 17 de abril de 2018

Adriano Nunes: “A rima pobre, o ritmo demais gasto!”

“A rima pobre, o ritmo demais gasto!”


Para tecer sonetos é preciso
Mesmo correr o risco de tecê-los
Com os dois pés quebrados e, assim, vê-los
Mancos, com passos trôpegos, sob riso

De algum crítico rígido que, ao lê-los,
Procura por defeitos, qual Narciso
A procurar por si: outro Narciso!
Nisso, o incauto poeta, em atropelos,

Vê-se desesperado. Fossem antes
A rima pobre, o ritmo demais gasto!
Mas não! Tinha que ser o pé quebrado!

Ó, leitores atentos, importantes
São todas as mancadas que de pasto
Servem pra o que na inveja vem forjado!

Adriano Nunes: "Sem ter asas"

"Sem ter asas"


Nesta noite
Tensa, nada
Resta, nada
Pensa a noite

Nem a nota
Como a noto.
Como a noto,
Nesta nota

Quase verso,
Quase valsa,
Quase voo.

Sem ter asa,
Sem ter álibi,
Ouso e sou.

Adriano Nunes: "Acende-me!"

"Acende-me!"


Estrela
Distante,
Alcança-me
Bem antes
Do sol,
Estrela
Mais próxima,
Romper
Gigante,

Fazendo
Sumir
As outras
Estrelas
Iguais
A ti.
Bem antes
Da vida
Fincar-se,

Sem chance
E vã,
Em mim,
Pois quase
Já é
Manhã.
Estrela,
Acende-me,
Enfim!

Adriano Nunes: “A voz” - para Caetano Veloso

“A voz” - para Caetano Veloso


Do fundo
Do báratro
Profundo
Do ser,

De tudo
Que brota
Ignoto
À orelha,

A voz.
Da verve
Que segue
Inteira

Por sê-la,
No cosmo,
Altíssima
Estrela.

Mistério
E métrica,
Palavras
Em festa.

Da fonte
Do âmago,
Estético
Prazer.

domingo, 15 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Solidão"

"Solidão"


Em casa,
É tudo
Ou nada.
Saudade
Que mata
Ou que
Traz vida

À alma.
Que basta?

Tristeza
Que dói
Ou que
Refaz
O olhar
E tudo
O mais.

Em casa,
Eis a
Questão!
As coisas
Estão
Formando
Um par:

À verve,
Que falta?

O garfo
E a faca.
Sofá,
Tapete.
Cadeiras
E mesa.
Que graça!

Eu, não.

Adriano Nunes: "A vida jorra"

"A vida jorra"


Amanheceu.
Tudo meu, seu,
Nosso ser pode
Dessa vez - ode

Ao deus do agora
Que nos implora.
O ser se deu
Com todo o eu?

Amanheceu
Pra o crente e o ateu.
A vida jorra
Sem voz lá fora:

Mais nos sacode,
Mais nos implode.
Voraz Proteu
Que nos sorveu.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Adriano Nunes: "A Mulher do Pau-Brasil" - para Adriana Calcanhotto

"A Mulher do Pau-Brasil" - para Adriana Calcanhotto


ADRIANACALCANHOTTO
ADRIANACALCANHOTTA
ADRIANACALCANHOTAM
ADRIANACALCANHOAMU
ADRIANACALCANHAMUL
ADRIANACALCANAMULH
ADRIANACALCAAMULHE
ADRIANACALCAMULHER
ADRIANACALAMULHERD
ADRIANACAAMULHERDO
ADRIANACAMULHERDOP
ADRIANAAMULHERDOPA
ADRIANAMULHERDOPAU
ADRIAAMULHERDOPAUB
ADRIAMULHERDOPAUBR
ADRAMULHERDOPAUBRA
ADAMULHERDOPAUBRAS
AAMULHERDOPAUBRASI
AMULHERDOPAUBRASIL

Adriano Nunes: “Antropofágica II” - para Adriana Calcanhotto

“Antropofágica II” - para Adriana Calcanhotto


Antropométrica
Poemofágica.
Antroporítmica
Musicofágica.

Porque não basta
O tudo ou nada.

Antropomítica
Quimerofágica.
Antropolítica
Palavrofágica.

Porque já calha
Ser tudo e nada.

Antropocíclica
Enigmofágica.
Antropohíbrida
Intimofágica.

Adriano Nunes: "Antropofágica" - para Adriana Calcanhotto

"Antropofágica" - para Adriana Calcanhotto


No palco, a rede,
Luzes acesas.
Tragam o público, 
Ponham-no à mesa.

Parte por parte,
Presa por presa,
Num ato único
A voz se deixa.

Dente por dente,
Carne já tesa.
Pra tanto mundo
Não há receita.

Tão de repente,
A grã beleza
Sangra mais fundo.
A vez é feita.

A Arte mesma
A vida beija
Em um segundo.
Feroz tigresa.

Adriano Nunes: "Desta noite chuvosa"

"Desta noite chuvosa"


Vibram as rosas pétreas
Do asfalto. São só elas
Que se alegram e festa
Fazem com as pequenas
Poças. Talvez, se percam
Entre os sustos e os freios.

Ah, noite dos atentos
Altos faróis! Que seres
São esses que desdenham
Do perigo e do elétrico
Acaso? Carros mexem-se
Em feixes, sob o néctar

Que do céu se desprende.
São só molhadas pedras
Que brincam, loucas, leves.
Ah, quem mesmo se atreve
A duvidar do que
Sentem, tão de repente?

Adriano Nunes: "A Mulher do Pau- Brasil"

“A Mulher do Pau-Brasil”


A grande compositora e cantora Adriana Calcanhotto está com um novo show “A Mulher do Pau-Brasil”, que inaugura turnê em Lisboa/Portugal. Adrix, para mim, é a mais brilhante compositora que a língua portuguesa já teve. Inteligentíssima, irreverente, dona de uma ars poetica capaz de impressionar pelas inovações estéticas tanto quanto pela beleza que emerge dos seus versos. Parte do que me penso e sinto como poeta tem muito de Adriana. A Safo da modernidade, ela representa as vozes de todas as poetas, desde as gregas e latinas antigas, passando por Emily Dickinson até romper com as fronteiras limitantes da língua, alcançando a brilhante Alice Ruiz. Parafraseando o compositor/cantor, amigo estimado, Péricles Cavalcanti, eu diria: “eu queria mesmo ser é a Adriana Calcanhotto”. Expressão máxima das Μοῦσαι, pode-se dizer, sem engano ou erro, que uma delas está entre nós, e que, em vez de uma lira, como tem Ἐρατώ, ou de uma flauta, como possui Ἐυτέρπη, Adriana traz a dor, o luto e a luta em seu violão. Múltiplo de si mesmo, o seu canto já foi sereia, mulher barbada, Partimpim. Agora vinga antropofágico, pronto para comer Caetano e devorar Oswald de Andrade. Mas não só. Medusa de olhos azuis, sabe bem como lidar com os estorvos e os portentos das palavras. Entre um “ultramar” rebelde e inalcançável e um “além-mar” acessível e claro, a sua métrica se desenvolve com íntimo liame com o mar. Mar que se encontra em Maritmo, em Maré, em Olhos de Onda, em amar, em Santo Amaro, em Porto Alegre (lembrem-se de que, para Spinoza, o amor é uma alegria!), em qualquer lugar que seja tocado pela genialidade ululante de Adriana. Homero, ao cantar “Παρὰ θῖνα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης” (Ao longo da costa do mar barulhento), na Ilíada, sabia da miríade de sons advinda do mar, inclusive o próprio silêncio amedrontador. Silêncio necessário à vida, à sobrevivência. Aos 18 anos, fiz o poema “Vernáculo “ e dediquei a ela. Tinha-me deslumbrado com o que li/vi/ouvi no belíssimo disco “Senhas”. Ali, naquele instante, percebi a proximidade instigante que ela possuía com a língua de Bandeira e Pessoa. Depois, com o seu abordar/bordar o mar, senti algo muito forte de Sophia de Mello Breyner Andresen. Foi Sophia quem disse “gosto de ouvir o português do Brasil/onde as palavras recuperam sua substância total”. Ambas amantes do mar, do ignoto mar português, do enigmático mar do verso português. Calcanhotto poderia ser mais um heterônimo pessoano. Entretanto, a sua arte foge à prisão do ser e à da derivação. Certamente, ela é “qualquer coisa de intermédio” que vai dela às outras que em seu âmago habitam. A sua verve é voraz e viva. Viva Adriana Calcanhotto, herdeira das profundezas e mistérios dos signos, a Mulher do Pau-Brasil!


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Transa sináptica"

"Transa sináptica"


Graças aos trânsito
Intenso, o acaso
Dar pode as cartas.
No olhar, o transe

Da tara, quase
Transa sináptica.
Na rádio, o reggae
Salta, saudade

Do que virá.
Não veio tarde
O lance erótico.
Mas era óbvio

Que já não dava
Por causa da
Hora que (passa!),
Sempre passava,

Sem parar. Lá,
Onde senti
Fundo, o desejo
Fez-se feitiço.

Agora já
Não durmo. Vejo
As pernas, os
Intactos músculos.

Gozo infinito
No que foi dito.
Nada marcamos.
Talvez, amigos.

Talvez, amantes.
Ah, que me alcance
Ardente chance!
Tudo é possível

Dentro do âmago.
Esvai-se o sono.
Finca-se o êxtase
De viver, ter

Prazer e ponto.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Somente os deuses sabem"

"Somente os deuses sabem"


Somente os deuses sabem
Da vaidade de serem
Deuses, do absurdo de
Saberem-se ser deuses,

Mesmo que não existam.
Somente os deuses sabem
Da verdade de serem
O que são: mito e ideia,

Mera ilusão. Talvez,
Quem sabe, surjam velhos,
Cansados de algum céu
Ou de um intacto inferno e,

De nós mesmos, liberte-nos.
Cansados de dor, tédio,
Atirem-se, de vez,
Ao báratro do nada,

Contra o vão Verbo e a Alma.

Adriano Nunes: "Elos do elã"

"Elos do elã"


Quase manhã.
Quadras escrevo.
Ah, será mesmo
Que a vez é vã?

Outra manhã
Quer vir a esmo...
Ah, sol longevo!
Onde está Pã?

Elos do elã:
Não mais me atrevo
A ser o mesmo.
Nova manhã!

Adriano Nunes: "O quanto devemos sonhar" - para Maurício Barros

"O quanto devemos sonhar" - para Maurício Barros


Será que mesmo vão nos deixar
Sonhar, ter, enfim, de cada sonho
A alegria de estar no lugar
Que se quer, que mais se quer estar?

Ou será que até vão controlar,
Pôr uma máquina que registre,
Compute, conte, fixe, reprima
e restrinja e regule e proíba

O quanto deveremos sonhar,
Quanto do sonho pode ser tido?
Será que nos vão deixar sorrir,
Sentir, pensar, ou ser desde já?

Será que nos vão deixar ser livres
Pra o que der e vier, sem limites?
Será que nos vão deixar ir longe,
Ter direito a passagens e pontes,

Janelas abertas, portas, frestas,
Saídas de emergência, ter delas
O instante de amplidão e portento?
Dará para assim sermos intensos?

Será que nos vão deixar seguir
Mesmo que no acaso tropecemos?
Ah! Tudo está muito estranho aqui!
Ah, Tudo está demais esquisito!

Teremos as asas do infinito?
Seremos em pleno voo abatidos?
Teremos direito a algum Brasil?
Voltaremos intactos a Ítaca?

Quanto disso tem de vida ainda?



Adriano Nunes: "Já não sei se lhe digo isto"

"Já não sei se lhe digo isto"


Já não sei se lhe digo isto
Ou se já não lhe havia dito.
Eu só sei que o Helênico disse
Lá num átimo bem antigo

Que até saber tudo é, no mínimo,
Nada saber, veja, acredite.
E agora que somos mais íntimos
E estamos nesse labirinto

De saber-e-nunca-saber,
Pode ser, sim, qu'eu perca o medo
E lhe diga sem mais porquês
Por que gosto de você mesmo.

Pode ser que ache ridículo,
Cafona, sem graça ou sentido,
Ter redito o que lhe dissera
Outras vezes, e repetindo,

Sem tino, sem tato, sem mera
Quimera ou química, essa
Fala porque amo o seu riso
Cínico, quando diz, sem riscos,

Somos apenas bons amigos!


domingo, 8 de abril de 2018

Adriano Nunes: "Por que não tu, ó poeta?" - para Leoni, por seu aniversário

"Por que não tu, ó poeta?" - para Leoni, por seu aniversário


Por que não tu, ó poeta,
Com a tua tinta estética,
A cantar a vida desta
Vida, à beça na cabeça?

Entre redondilhas, deixa
Qu'eu te ache, sem já ter
Que me revirar do avesso,
Sem ter que esquecer mesmo

O que em mim não sei se ousei.
Se não tiver pra depois
Sequer eus, elos ou leis
- Here, to you, what can I say?

Como farei pra te dar
O mar da canção em que,
Como bem vês, me inspirei?
Ah, tudo um dia se foi!

Ah, tudo uma hora irá!
Ah, portentoso prazer!
O amor em que patamar
Pôr para assim te ofertar?

Aqui, pra comemorar
Teu dia, entrego-te já
Do âmago da alegria
Tua própria poesia.


Adriano Nunes

Adriano Nunes: “Dessa tristeza”

“Dessa tristeza”


Cabe no verso
A dor dos céticos.
Cabe no verso
A dor dos éticos.
Cabe também
A dor de quem
Mantém-se ébrio.
A dos bem bêbados
De algum mistério.
No verso cabe
A dor dos cegos,
A dor dos nexos,
A dor da dor
Do que passou
Sem deixar marcas,
A dos covardes,
A dos que velam
Pelas verdades,
A dos que vagam,
A dos que ardem
Às madrugadas
Pra tudo ou nada.
No verso cabe
A dor das artes,
A das saudades,
A das maldades,
A das bondades,
Cabe a dor, toda
A dor mais louca,
A dor das bocas,
A dor da vida,
A dor temida
Da despedida,
A dor do agora,
A que apavora.
Cabe no verso
A dos espertos,
A dos traídos,
A dos que são
Só coração.
No verso cabe
A dor que salta
Da vã palavra,
A dor do não,
A dor que mata,
A dor da mágoa,
A dor das máscaras.
Cabe no verso
- ah, quem diria!-
Toda a alegria!

Adriano Nunes: “Uma alegria estética” - para Sergio Serra

“Uma alegria estética” - para Sergio Serra


Escrevo poemas todos os dias.
Rascunhos reviram-me vorazes.
Papéis amassados por muitos lados.
As entranhas da folha em branco estranham
O labirinto-laboratório de liames que traço
Enquanto o sonhar faz-se interessante.
A qualquer instante.
Fazer do verso uma célula totipotente.
Um embrião metafórico neon.
Desde muito cedo, sempre foi assim.
As Musas me perturbam, e eu gosto
Do que me vem como inspiração.
Pouco me importa o que sobra de mim.
O mistério de haver essa esfera
É que do báratro mesquinho me liberta.
Eis a ars poetica.
Não sei bem a que a poesia levar-me-á,
Ainda que demais goste do seu fluxo
De indecifráveis enigmas.
Às vezes, penso quem me sinto e divago
Sobre tudo o que não sou.
Outras vezes, amalgamo-me a verdades
Que não suportam ser verdades.
Fui sendo um espectro de imagens
E uma saudade absoluta
De horas que sequer vivi,
Mas que parecem ter vivido em mim.
Chegamos à velha Grécia.
Todas as cores do mar, se quiseres,
Podes pedir-me. Pede! Tão breve
Não é a vida? Não é o que cantam?
Guardei alguns assombros de Medusa
Em meu próprio olhar.
Talvez, ainda dê tempo de evitar
Que as chamas consumam Troia.
Talvez, queimemos satisfeitos lá.
Tudo é tormento e horror!
Do amor, amo a liberdade de amá-lo.
Tento, assim, expressar com palavras
O que me faz ter um sentido,
O que me faz ver como as coisas são
Como, enfim, são. Às vezes, surge algo belo.
Outras vezes, é só angústia e dor.
Talvez, eu tenha fracassado
Ao tentar imprimir em cada signo
Quem me penso e sinto. Talvez, eu
Tenha me dilacerado mais vezes
Do que me dilaceraram os outros.
Todavia a poesia me vem
Sempre como um portento estético,
Onde um fulgor parece me garantir
Um fragmento de alegria. Sim, parece
Que isso me salva de mim.
A poesia é uma alegria,
No sentido que Spinoza dá ao amor:
Isto é, alegria.
Que mais do infinito querer poder-se-ia?


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Pra Octavio Paz"

"Pra Octavio Paz"


ELARCOYLALIRA
ELARCOYLALIRS
ELARCOYLALISO
ELARCOYLALSOY
ELARCOYLASOYO
ELARCOYLSOYOC
ELARCOYSOYOCT
ELARCOSOYOCTA
ELARCSOYOCTAV
ELARSOYOCTAVI
ELASOYOCTAVIO
ELSOYOCTAVIOP
ESOYOCTAVIOPA
SOYOCTAVIOPAZ

Octavio Paz: "El mar, el mar y tú, plural espejo,"(tradução de Adriano Nunes)

"O mar, o mar e tu, plural espelho" (tradução de Adriano Nunes)


O mar, o mar e tu, plural espelho,
o mar de torso preguiçoso e lento
nadando pelo mar, do mar sedento:
o mar que morre e nasce em um reflexo.
O mar e tu, seu mar, o mar espelho:
rocha que escala o mar com passo lento,
pilar de sal que abate o mar sedento,
sede e vaivém e apenas um reflexo.
Do montante de instantes em que cresces,
do círculo das imagens do ano,
retenho um mês de espumas e de peixes,
e sob os cosmos líquidos de estanho
teu corpo que na luz abre baías
à escura ondulação de todos dias.


Octavio Paz: "El mar, el mar y tú, plural espejo,"


El mar, el mar y tú, plural espejo,
el mar de torso perezoso y lento
nadando por el mar, del mar sediento:
el mar que muere y nace en un reflejo.
El mar y tú, su mar, el mar espejo:
roca que escala el mar con paso lento,
pilar de sal que abate el mar sediento,
sed y vaivén y apenas un reflejo.
De la suma de instantes en que creces,
del círculo de imágenes del año,
retengo un mes de espumas y de peces,
y bajo cielos líquidos de estaño
tu cuerpo que en la luz abre bahías
al oscuro oleaje de los días.


PAZ, Octavio. El mejor de Octavio Paz: el fuego de cada día. Selección, prólogo y notas del autor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1989, pp. 11-12.