segunda-feira, 12 de julho de 2021

Adriano Nunes: "Roma" - para Péricles Cavalcanti

 "Roma" - para Péricles Cavalcanti


Roma:
Reino
Roto.
Remo,
Rômulo,
Rústicos.
Ritos,
Regras,
Riscos.
Res,
Restos,
Roubos...
Ri,
Roga,
Reza.
Roma:
Rútila
Rota.

Adriano Nunes

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Adriano Nunes: "Sobre uma passagem de Νεφέλαι, de Aristófanes" - para Caetano Veloso

 Sobre uma passagem de Νεφέλαι, de Aristófanes (para Caetano Veloso)


Ao fim da peça Νεφέλαι (As nuvens), de Aristófanes, apresentada aproximadamente em 423 a.C., temos algo inusitado: o autor sugere explicitamente que Sócrates (que está na plateia, segundo relatos antigos!) e os seus amigos seguidores sejam mortos, por não acreditarem nos deuses da πόλεως. O que era para ser uma simples comédia satírica, tornar-se-á, 25 anos depois, um sério instrumento de acusação contra Sócrates o qual será condenado à morte.

O texto grego original é este, em que a acusação é resumida:

Στρεψιάδης (Strepsíades)
τί γὰρ μαθόντες τοὺς θεοὺς ὑβρίζετε,
καὶ τῆς σελήνης ἐσκοπεῖσθε τὴν ἕδραν;
Ερμῆς (Hermes)
δίωκε βάλλε παῖε, πολλῶν οὕνεκα,
μάλιστα δ᾽ εἰδὼς τοὺς θεοὺς ὡς ἠδίκουν.

Pus o texto para evidenciar algo também importante: nas edições diversas, todos esses fragmentos têm sido atribuídos a Strepsíades, quando, em verdade, os dois últimos versos desses fragmentos (versos 1008 e 1009) são ditos pelo deus Hermes. Por que Aristófanes põe esses 2 últimos versos na voz de um deus? O que está por trás dessa acusação de fundo dogmático religioso?

Primeiro, vamos à tradução:

Strepsíades:
Por que insultas os deuses e contemplas a morada da Lua?
Hermes:
Persegue, ataca, destrói! Eles merecem por motivos vários, máxime porque insultaram os deuses.

Mesmo a edição em que Carlo Rovelli se baseia para escrever o seu brilhante livro "Che cos'è la scienza. La rivoluzione di Anassimandro" não faz essa pequena distinção. Nem mesmo a edição The Complete Plays of Aristophanes, editada e com introdução de Moses Hadas faz. Inúmeras importantes edições fazem símile, inclusive algumas brasileiras, como a traduzida por Gilda Maria Reale Starzynski. Os motivos? Talvez, nunca saberemos. A fonte em que se debruçaram para traduzir? Mesmo no site Perseus, importante sítio de cultura grega e latina, que traz o texto grego original, com a fala de Hermes, suprime Hermes ao traduzir, pondo tudo na boca de Strepsíades.
Voltemos aos possíveis motivos das acusações. O real sentido deste pequeno ensaio sócio-histórico crítico.

A primeira razão para não suprimirmos a fala do deus Hermes parece óbvia: se se está a criticar moralmente um descrente, nada mais coerente que um deus pronuncie a sentença radical, cruel. A presença da fala de Hermes marca a última possível palavra para os rumos da existência humana. No teatro grego antigo, as ações humanas são in totum determinadas pelos deuses, pela vontade divina. Essa ruptura teatral dar-se-á apenas com Shakespeare e a sua "invenção do humano", como defendeu e atestou Harold Bloom. Hermes ditar o que deve ser feito com Sócrates, põe uma ordem no universo de tudo que há. Mas há algo mais...

Por que Strepsíades se refere a contemplar a morada da Lua? Em grego antigo, lua é ἡ σελήνη (no nominativo, por Selene, Selena e termos derivados). O texto grego traz τῆς σελήνης (no genitivo). A lua, como todos os astros, está acima da terra, no céu. E estar no céu significa pertencer ao reino dos deuses. O céu é o âmbito inviolável do divino, logo tudo que nele ocorre se dá por vontade divina, por ordem divina. Os fenômenos celestes, incluindo os raios, os trovões, as nuvens, a chuva, etc. são as mais visíveis manifestações da divindade, isto é, há uma ordem além-humanidade onde as coisas acontecem porque fazem parte exclusivamente do divino. Por isso, os gregos antigos, além da palavra ἄνθρωπος, para indicar seres humanos, humanidade, usavam uma específica para demarcar o traço mais humano que há: a mortalidade. Para indicar que o ser humano é mortal, distinto dos deuses, os gregos usavam a palavra βροτός. Insultar os deuses é uma forma de atestar que o insultador é um mero βροτός.

A palavra grega antiga ἕδραν significa "situação" ou "posição" e também "nádegas". Refere-se, então, às investigações meteorológicas dos socráticos e à sua insolência e indecência; Precisamos, assim, aqui, também pensar na Lua personificada como uma mulher. E mais: é importante lembrar que ἕδραι são os quadrantes do céu em que os presságios aparecem, acontecem, como percebemos esse sentido nos textos de Ésquilo e Eurípides. Agora sim, estamos quase lá! Por que Sócrates e seguidores ofendem os deuses? O que eles defendem que seja tomado como uma ofensa grave? E de onde será que partiu essa defesa, qual a sua origem?

A palavra ὑβρίζετε vem do verbo ὑβρίζω que, em Atenas, tinha um sentido legal, significando fazer um ultraje pessoal, maltratar, agredir. Usá-la, neste sentido, já que possuía outros, significa mesmo reforçar o caráter de ofensa. E a palavra ὕβρις, em seu sentido mais comum, significava devassidão, violência desenfreada ou insolência. A acusação feita contra Sócrates era então mesmo grave, pois mexia, abalava e insultava a ordem das coisas, o κόσμος como um todo.

Aproximadamente 2 séculos antes de Sócrates, um pensador de Mileto dava início a esse abalo na ordem das coisas: Anaximandro, que viveu aproximadamente entre 610-546 a.C. E o que fez Anaximandro? De acordo com Carlo Rovelli, a partir de Anaximandro, nasce a ideia de que seja possível compreender os fenômenos celestes e meteorológicos como ligados a causas naturais, independentemente das vontades e decisões divinas. A chuva, para Anaximandro, é um fenômeno natural. Surge a partir da evaporação da água do mar. Esta se acumula, formando nuvens (Νεφέλαι). Dizer isso, abertamente, promoveu uma das maiores rupturas na história do conhecimento humano. E as implicações disso trariam consequências sérias e até mesmo letais, como a morte de Sócrates.

Aprendemos, com Jean-Pierre Vernant, que a religião grega, além do θάμβος (temor reverencial, espanto, o maravilhar-se) e do sentimento difuso do divino (δαιμόνιον e θεῖον), apresenta-se como uma vasta construção simbólica, complexa e coerente que compreendia, assim, mito, rito e representação figurada. Esse conjunto de signos e sentidos configuravam uma ordem divina que se distinguia plenamente da esfera humana, ainda que com ela muito e intensamente se relacionasse. E era essa mesma ordem divina que era tomada por homens que se diziam descendentes direta ou indiretamente dos deuses, que ditavam, também a bel-prazer, os νόμους como se fossem legitimados pelos deuses citadinos, principalmente por Zeus. E, também, a partir daí, talvez, uma das origens do homem violento, da intolerância, como parte paradoxalmente do processo civilizatório.

A acusação de Strepsíades contra Sócrates e seus amigos. A sentença bárbara de Hermes. O motivo real disto, isto é, a ousadia racional de pensar o mundo fenomênico não mais como um objeto de vontades e caprichos dos deuses, apesar de sua consequência funesta para Sócrates, lançou mundos no mundo. Este lançar mundos no mundo abriu a existência para as possibilidades do conhecimento, das verdades fatuais, das ciências. Quase 2500 anos depois, ainda nos deparamos com novos Strepsíades, com novas sentenças de novos Hermes impiedosos, que buscam, a todo custo, negar a razão e seus fundamentos e efeitos mais visíveis: liberdades, conhecimentos, verdades fatuais. A pandemia veio mostrar-nos que os novíssimos tribunais da Inquisição ainda estão com as suas fogueiras acesas, com a sua barbárie prêt-à-porter, seus séquitos de negacionistas, irracionalistas, de intolerantes violentos.

Adriano Nunes