quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Adriano Nunes: "Vai passar..." - para Roberto Bozzetti

"Vai passar..." - para Roberto Bozzetti


Sempre dizem: "vai passar"
E sempre passa.
Mas deixa marcas,
Mortes, metades menos metades, mágoas,
Memórias.
"Vai passar!" Lembram-nos a toda hora.
E tudo sufoca por ser tudo.
Tudo passou e passou com tudo.
85 milhões de mortos
Naquela Guerra de ódio.
Tudo passará. E tudo mesmo passou.
6 milhões de judeus exterminados
Nos campos do horror.
Sempre afirmam: "passa já!"
Como se apenas passasse
E não dilacerasse o espírito e a carne.
Aguentamos o horror com o conformismo
Que o horror espera de nós.
Como se só houvesse a mesma voz
Para repetir a cantilena do absurdo:
"Vai passar!"
E passa, como bem se sabe.
E passa, como tudo tem passado.
Depois, a lembrança da inércia,
Da cegueira, do embotamento,
Do fascínio controlador do imo e do tino,
Como se fosse isso outro início,
No mínimo.
É, no mínimo, vai passar,
Ainda que se finque no corpo e no olhar
Aquela dor de existências,
De essências, de futuros.
Ainda que só reste o silêncio,
A palavra por vir, o porvir sem palavra.
Ainda que entre escombros e remorsos,
Encontremos soterrado no óbvio
O nada.


Adriano Nunes

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Adriano Nunes: "ego"

"ego"


eu quer ser só mais do que eu
eu quer ser só mais do que
eu quer ser só mais do
eu quer ser só mais
eu quer ser só
eu quer ser
eu quer
eu
e
eu
eu não
eu não sei
eu não sei ser
eu não sei ser só
eu não sei ser só mais
eu não sei ser só mais um
eu não sei ser só mais um eu



Adriano Nunes

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Adriano Nunes: "Os homens violentos vêm com a Morte"

"Os homens violentos vêm com a Morte"


Os homens violentos vêm com o vento.
Eles não tardarão em chegar às portas
Do agora. A violência é a sua força.
São extremistas os homens violentos.

Eles não se aceitam e querem impor
Aos outros a sua funesta moral.
Apenas toleram o ser mesmo igual.
Nada se importam com o que vem do amor.

Os homens violentos vêm com a Morte.
Eles não tardarão em as cartas dar
Para que dúvidas não haja de que são
Os homens violentos, sem coração.

Em lares põem fogo, existências ceifam,
Sem quaisquer escrúpulos, sequer remorsos.
São feras em fúria que apostam no óbvio
As fichas últimas da persuasão.

Eles irão matar por amor ao ato
Em si: matar por matar. Eles matarão
Inúmeros cidadãs e cidadãos.
É esta forma de amar que sabem dar,

Enquanto queimam ou decaptam pessoas,
Enquanto atiram em vulneráveis alvos.
Eles, os monstros, a vida implodirão
E explodirão os prédios tidos pagãos.

Os homens violentos vêm do grã fracasso
Humano, das ambições mais funestas...
Eles não tardarão em chegar às frestas
Dos sentidos para logo aniquilá-los.

A violência total é o que só soa.
Símiles a Aquiles, homens violentos
São. Herdeiros da Vingança e do Terror,
Querem apenas a vez e a voz ter não.

Eles, os do Báratro Infinito, odeiam
As verdades das Ciências e dos fatos.
Seres violentos não sabem perder,
Já não sabem do perdão. Saber por quê?

Os homens violentos no mundo estão.
Para eles, a existência é dicotômica:
O lado dos adversários é o errado.
São bárbaros de distorcida visão.

Filhos de tradições, de ideologias,
Os homens violentos querem robôs
Fazer de todos, por poder e prazer.
Eles temem o que a alegria engendrou.

Os homens violentos vêm com o Tempo.
Eles não tardarão em chegar às portas
Das Leis. A violência é o seu princípio.
Tiranos os homens violentos são.


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "normalidade" - para Marielle

"normalidade" - para Marielle


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Adriano Nunes: "Quando iremos chegar lá?"

"Quando iremos chegar lá?"


Eu tenho os meus muitos medos.
Ontem eu roí as unhas
Porque tenho muitos medos.
As unhas crescer irão.
Os medos podem ou não
Aumentar. Sequer supunha
Que tantos medos eu tinha.
Quando as unhas têm tamanho
Que dê pra cortá-las, corto-as.
Medos não são algo à toa.
A liberdade também
Não é. Que nem minhas unhas,
Liberdades são cortadas.
Medo de perdê-las tenho.
Ah, quanta gente está presa
A desejos, a si mesma!
Ontem eu roí as unhas
Porque algum medo até tive.
Marielle era livre e
Morreu porque era livre.
Há quem não tolere quem
É livre, quem vive bem.
Boétie disse que já
Nascemos livres. Rousseau
Isso também depois disse.
Símile Kant afirmou.
Quando iremos chegar lá?
Ou será tudo crendice?
Minhas unhas crescerão.
Liberdades defendidas,
E pessoas libertadas -
Eis a regra mais sensata!
Tenho alguns medos, mas não
Tenho medo de sabê-los.
Eu sei que sou livre, mesmo
Quando o mundo grã prisão
Quer tornar-se. A Poesia,
Sim, não tem medo de nada.
A Poesia não tem
Medo mesmo de ninguém.
Contra o horror, versos à mão.


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "A manhã que nasce"

"A manhã que nasce"


É quase manhã...
E a manhã se abre
Ao pensar. É mágico
O esperar manhãs!

Perante o anteparo
Do olhar já reparo
A manhã saltar
Do infinito báratro.

É clara a manhã.
"É manhã!" declara
O pensar. É claro
O pensar manhãs.

Oh, que instante raro
Ver morar no olhar
A manhã que nasce
Para todos os Fados!


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Do que dói fundo"

"Do que dói fundo"


Vem madrugada...
Eis o ruído
De existir mundo,
Quase silêncio,
Mistério imenso!

O que compor
Com os fragmentos
Do que dói fundo,
Do que mais arde
Pra tudo e nada?

Haverá isto
No pensamento
Apenas, tido
Qual grave amor,
Oh, furor mítico,

A mais sonhar-te?
Com quais vestígios
De ilusão pôr
A engendrar tempos
O sol da Arte?

Oh, verve alada,
Como agarrar-te
Intacta, dentro
Do acolhedor
Devir fecundo?

Já madrugada.
Este ruído
De sumos, mínimo,
Mesmo silêncio
Faz-se supor.


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "ars poetica"

ars poetica


do in stante nasce
do in stante nasc m
do in stante nas ma
do in stante na mag
do in stante n magn
do in stante magna
do in stant magna f
do in stan magna fe
do in sta magna fel
do in st magna feli
do in s magna felic
do in magna felici
do i magna felicid
do magna felicida
d magna felicidad
magna felicidade


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Mishima" - para Gal Oppido

"Mishima" - para Gal Oppido


O infante sem ter ainda
Um brinquedo que possa engendrar
Uma existência distinta,
Outra existência
Que se faça plena no Outro.
Talvez, a mísera.
Talvez, a mítica.
Talvez, a mínima.

O falo próprio posto ao óbvio.
O toque tático.
O toque-espanto.
O toque quântico.
As coisas trágicas por detrás do prazer
- A máxima máscara - .
O gozo estético, o esperma-espelho.
Qualquer consciência à deriva.
Qualquer consequência à prima vista.
O cheiro da possibilidade do múltiplo.

O adulto pronto para as instruções de uso.
O quadro de Guido Reni,
mais que quadro,
Símbolo do ato futuro.
A relação íntima com a fotografia
Como se o Devir devesse seguir
Plástico, paralisado, capturado,
Ao menos, por um
Instante.
Como se tudo isso fugisse
Da alegoria.
O ser mais livre.

A tentativa irreprimida
De alcançar o Outro em si,
Os tantos Outros sem fim de toda a vida.
O falo liberto de leis, de ser
somente falo.
O falo liberto de ais, machucado.
O falo entregue à dor, fetichizado.
O falo sendo vácuo, semente soando.
O olhar a vagar pelos cantos...
O Teatro dos Acasos preparando a Morte.
A foice-flecha
- indiferente a tudo -
Decapta o momento absurdamente mudo.


Adriano Nunes

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Adriano Nunes: "Somos uns bárbaros"

"Somos uns bárbaros"


Ah, corpos quantos
Por vácuo vasto
Sugado, o espaço
Aberto, dado
A todo Estado,
Para matar
O cidadão,
A cidadã!
Vê, meu bem, já:
O Estado mata
Também, cá, lá!

Oh, vidas tantas
Tão violadas!
Escolhas são
Para atestar
Quem menos mata,
Quem matará
Mais? Eis o dado
Enfim palpável
Dessa ilusão:
Somos ou não
Civilizados?

Constato: não!
Pois precisamos
Da voz legal
Para moldar
Os nossos atos,
Para atestar
Que somos, claro,
Uns animais
Ferozes, mais
Que os animais!
Somos humanos,

Poder buscando,
Buscando fama,
Glória, o céu alto!
Somos uns bárbaros
Prestes a dar
O golpe baixo
Contra a vez mágica
Da vida! Estamos
Sempre louvando o
Ser arbitrário,
O vil carrasco,

O rei tirânico,
O autoritário
Chefe de Estado!
As leis amamos
Sem as testar.
Dizemos: quão
Belas leis são!
A morte trágica
De irmãs, irmãos,
Comemoramos!
Eis o mal máximo!

Até matamos
Em nome das
Crenças e das
Verdades nada
Prováveis! Cada
Hora é só máscara
E intolerância!
E, em cada instante,
O Horror se faz
Mesmo capaz
De dar as cartas!


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Have wings, get out of myself"

"Have wings, get out of myself"


When I was a child I was
Free, as children can be
Free. Then, already young,
I thought freedom was to
Have a Honda or a Subaru.

Now, freer than ever, I
Walk unclad in my home,
Have wings, get out of myself,
And dive into infinity of what

I feel about everything.
Icarus enchanted by
The sky! Sometimes
There is someone close,

Skin to skin. I keep on
Alone sometimes.There
Are flowers and a desert.
There is an intimate fight:

A mix of hell and heaven!
Other times, I write
Verses. When I was a child
I was happy, as children

Can be happy. Now, not
So young, I know happiness
Is to have a piece of peace
On my mind. By the way,

Only that. Oh, my heart,
Say to me how that balsam
I find! How can I find
That? Looks like I'm blind!


Adriano Nunes

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Adriano Nunes: "ars poetica"

"ars poetica"


preciso entregar o meu coração
ao primeiro poema
que bater à minha porta,
trazendo flores ou quimeras à mão.
preciso estar disposto para
escapar às intempéries vastas
do sim e do não.
com que pretensão construir-desconstruir
as coisas que só são?
com que ambição dar sentidos
a voz angustiada da imaginação, de vez?
sê este objeto destituído de conceito!
sê este objeto que se reconhece leve e
livre de fórmulas e regras!
sê esse assombro sináptico, este sopro
de portentos surpreendentes!
sim, primo poema, vem, vem logo,
sem quaisquer propósitos!
vem como és, em si e para si,
como se fosses mesmo o silêncio
que se esconde em cada átimo ignoto.
leva tudo que sou, urgentemente.
leva a carne, os ossos, a pele, o olhar, a mente.
sê apenas o que és, este mistério
travestido de sombras e metáforas.
talvez, assim, levando-me, de mim tragas
a palavra, a rima, o ritmo, o metro, o sonho estético.
para ver se também posso ofertar-te,
quem sabe, a beleza da não-verdade.
ou a verdade de si
mesmo: a finalidade sem fim
que engendra tudo e arde.

Adriano Nunes

sábado, 21 de setembro de 2019

Adriano Nunes: "Os monstros fascistas"

"Os monstros fascistas"

Eles acreditam que são os escolhidos
E que, por isto, podem também escolher
Os que merecem estar vivos pra segui-los,
Os merecedores das ilusões morais.

Eles creem cegamente nos seus sentidos,
Em sua força bruta, seus conceitos, regras
E princípios. E ditam essas coisas porque
Pensam ser possível criar tempos de iguais,

Ainda que pra tanto a violência impere.
Não importa que morra uma criança a tiros.
Não importa que negros sejam sempre presos.
Não importa que se façam presos políticos.

Não importa que gays sejam apedrejados
Ao vivo. Sequer que haja aumento do índice
De feminicídio. Eles pensam que em nome
Da família, da igreja, do que lhes consome,

Todo o resto não vale nada. Só os seus
Séquitos robotizados advogam mesmo
Ter direitos ao artificial paraíso
Forjado à custa de sangue, de carne e espírito.

Não importa que as matas sejam devastadas.
Não importa qu' índios sejam exterminados.
Para eles só há um lado: o deles, lógico!
Jamais se perguntam se têm demais vil ódio!

Ah, como os monstros fascistas querem ir longe
Com as suas políticas totalitárias!
Ah, como veneram a morte, o terrorismo!
Ah, como impor buscam a fúria dos facínoras!

Outra menina é assassinada no Rio
Por uma política assassina! A política
Que separa, distingue, trucida, aniquila
A vida vulnerável, sob norma abusiva!

Adriano Nunes

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Adriano Nunes: "Do profundo eu" - para a minha mãe

"Do profundo eu" - para a minha mãe


Quantas vezes falei para mim mesmo:
"Desta vez mudarei, mudarei mesmo!",
Como se bem soubesse qu'era a esmo,
Como se me dissesse: "mudo a esmo"!

Quantas vezes falhei por ser quem sou,
Por abdicar de ser outro, por pensar ou
Supor que melhor ser quem já me sou!
A que quimera o ser me arremessou?

Oh, vontade absoluta de ser já
Qualquer um além deste que me fiz!
Por que me encarcerei em mim cá, lá?

Oh, vestígio fictício do que há
Entre o ser e o não ser pleno, feliz!
Quantas vezes falei: "o amor virá!"!


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Risks, rhymes, dreams" - to my dear friend Péricles Cavalcanti

"Risks, rhymes, dreams" - to my dear friend Péricles Cavalcanti


I am living
In my beats
Where I keep
Free and happy.
Day to day,
Sounds I seam.

Where I never
Need to know
That loves cease
But just say
Of my soul
Risks, rhymes, dreams.

In a verse
I am living.
And in it
Time is quit,
Is diverse,
Has a gleam.


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Melhor um poema" - para Antonio Cicero

"Melhor um poema" - para Antonio Cicero


Melhor um poema
Do que prisões, penas,
Pedras e problemas.
Melhor um poema

Do que algum dilema,
Propósito. Apenas
Em ser sol se antena.
Melhor um poema!

Que a querela extrema
Política, em cena,
Que se concatena,
Melhor um poema!

Do que algoz algema,
Do que vãs sistemas,
Do que a práxis plena...
Melhor? Um poema!

Eis que nos acena
O poema: gema
Raríssima! Apenas
Em ser é, se esquema.


Adriano Nunes

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Adriano Nunes: Sereias e cera: Ὀδυσσεύς dado ao canto ou ao silêncio? – para Antonio Cicero


Sereias e cera: Ὀδυσσεύς dado ao canto ou ao silêncio? – para Antonio Cicero


I


Em sua Ὀδυσσεία, Homero, entre os versos 173 e 179, do Livro XII (“αὐτὰρ ἐγὼ κηροῖο μέγαν τροχὸν ὀξέι χαλκῷ/τυτθὰ διατμήξας χερσὶ στιβαρῇσι πίεζον:/αἶψα δ᾽ ἰαίνετο κηρός, ἐπεὶ κέλετο μεγάλη ἲς/Ἠελίου τ᾽ αὐγὴ Ὑπεριονίδαο ἄνακτος:/ἑξείης δ᾽ ἑτάροισιν ἐπ᾽ οὔατα πᾶσιν ἄλειψα./οἱ δ᾽ ἐν νηί μ᾽ ἔδησαν ὁμοῦ χεῖράς τε πόδας τε/ὀρθὸν ἐν ἱστοπέδῃ, ἐκ δ᾽ αὐτοῦ πείρατ᾽ ἀνῆπτον:”), canta-nos que Odisseu – este relatando em primeira pessoa ἐγὼ (eu) - corta uma massa redonda de cera em fragmentos pequenos que são esquentados pelas próprias mãos. A seguir, ele põe a cera nas orelhas dos seus companheiros para que não ouçam o canto das Sereias, alerta dado por Κίρκη (Circe) que, nos versos 159 e 160, se apresenta assim: “Σειρήνων μὲν πρῶτον ἀνώγει θεσπεσιάων/ φθόγγον ἀλεύασθαι καὶ λειμῶν᾽ ἀνθεμόεντα.” (“Primeiro ela nos mandou evitar a voz das maravilhosas Sereias e o seu prado florido.”). A palavra grega antiga para Sereia é Σειρήν (no caso nominativo singular, quando faz a função de sujeito). No texto analisado, a palavra Σειρήνων está no genitivo plural, fazendo, portanto, a função de complemento nominal, pois “a voz das maravilhosas Sereias”.  É preciso compreender ainda que não se trata de um simples aviso, mas de um oráculo, isto é, uma informação divina acerca do destino. E Circe deixa explícito que é para evitar a morte, pois nos versos 155 a 157, Odisseu relata a necessidade de todos conhecerem o que a deusa disse, para que não morram: ” θέσφαθ᾽ ἅ μοι Κίρκη μυθήσατο, δῖα θεάων:/ ἀλλ᾽ ἐρέω μὲν ἐγών, ἵνα εἰδότες ἤ κε θάνωμεν/ κεν ἀλευάμενοι θάνατον καὶ κῆρα φύγοιμεν”. Percebam que o verbo grego ἀλέομαι (ἀλευάμενοι) significa “evitar”, “afastar”, e a palavra θάνατος significa “morte” que, no texto, apresenta-se como θάνατον, ou seja, na forma acusativa singular cumprindo a função de objeto direto, isto é: evitar o quê? Θάνατον! Todavia, por que Circe afirma que Odisseu deve ouvir o canto das Sereias e os demais não? Por que ela quer dar esse privilégio apenas ao herói de Ítaca e não a alguns de seus companheiros, já que todos, obviamente, não poderiam ouvi-lo pois morreriam? Seria isso uma dádiva restrita a alguns (no caso, Odisseu) ou apenas o capricho de uma deusa apaixonada (a proximidade com a morte evidencia alguma espécie de prazer para os deuses?)? Por que Odisseu aceita ouvir o canto das Sereias sem ter a certeza de que os outros não ouvirão? Por que ele não tapa as orelhas, segundo o relato de Homero? Ou ele tapou as orelhas e nem mesmo Circe, os deuses, os companheiros e nem mesmo Homero sabia disso, já que o poeta grego costuma chamar Odisseu de astuto, sagaz, inteligente, usando epítetos tais como πολύτροπος (versátil, multifacetado), logo até no começo da Odisseia: “ἄνδρα μοι ἔννεπε, μοῦσα, πολύτροπον, ὃς μάλα πολλὰ/ πλάγχθη, ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν”? Seria outra astúcia do personagem que, enfim, liberta-se do seu criador e de todo o destino, até do leitor? 


II


 Passemos, agora, para a intrigante e instigante versão do mito contada por Franz Kafka em “Das Schweigen der Sirenen”. Kafka afirma que “um sich vor den Sirenen zu bewahren, stopfte sich Odysseus Wachs in die Ohren und ließ sich am Mast festschmieden”(para se proteger das Sereias, Odisseu tapou, com cera, as orelhas e fez-se atar ao mastro). Neste primeiro relato kafkiano, temos uma diferença substancial do relato homérico, pois o escritor grego disse que Odisseu não tapou as orelhas com cera, mas que chegou a ouvir o canto das sereias amarrado ao mastro. Vejamos: “ὣς φάσαν ἱεῖσαι ὄπα κάλλιμον: αὐτὰρ ἐμὸν κῆρ/ ἤθελ᾽ ἀκουέμεναι, λῦσαί τ᾽ ἐκέλευον ἑταίρους/ὀφρύσι νευστάζων: οἱ δὲ προπεσόντες ἔρεσσον.” (então elas falaram, enviando a sua linda voz, e o meu coração foi feliz em ouvi-la, e eu disse aos meus companheiros que me soltassem, acenando-lhes com as minhas sobrancelhas; mas eles prostraram-se em seus remos e remaram). Como poderia saber Odisseu que a voz das Sereias era mesmo bela, se não a ouvisse? Como saber que não era uma armadilha de Circe, senão ouvindo tal ὄπα κάλλιμον (bela voz)? É preciso compreender outro fato importante: as Sereias fazem questão de afirmar que sabem de todas as coisas que acontecem “ἴδμεν δ᾽, ὅσσα γένηται ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ” (verso 191, Livro XII). Se sabem de todas as coisas, certamente estavam “cons-cientes” de que Circe havia ajudado o seu estimado guerreiro, o astuto Odisseu. Se sabiam da cera e da proteção, insistiriam em cantar ou manter-se em silêncio? Conta-nos Kafka que “der Sang der Sirenen durchdrang alles” (o canto das sereias penetrava tudo). Parece agora haver um grande paradoxo, já que Circe disse que a cera protegeria a todos. Para Kafka, a arma mais poderosa das Sereias não é o seu canto, mas o seu silêncio: “nun haben aber die Sirenen eine noch schrecklichere Waffe als den Gesang, nämlich ihr Schweigen. Es ist zwar nicht geschehen, aber vielleicht denkbar, daß sich jemand vor ihrem Gesang gerettet hätte, vor ihrem Schweigen gewiß nicht” (agora, todavia, as Sereias têm uma arma ainda mais terrível do que o canto, ou seja, o seu silêncio. Pode não ter acontecido isso, mas é concebível que alguém tenha se salvado de seu canto, certamente não do seu silêncio.). O problema epistemológico que resulta disso é que Kafka não diz exatamente qual seria o poder desse silêncio, como ele agiria para que ninguém escapasse. Se ninguém escapou para relatar tal silêncio, como Kafka poderia saber disto? Homero não se atreve a tanto em sua ingenuidade brilhante. Para escapar desse labirinto de sentidos complexos, Kafka utiliza-se justamente das características que Homero dera a Odisseu. Assim relata, ao fim da sua pequena história, que “Odysseus, sagt man, war so listenreich, war ein solcher Fuchs, daß selbst die Schicksalsgöttin nicht in sein Innerstes dringen konnte. Vielleicht hat er, obwohl das mit Menschenverstand nicht mehr zu begreifen ist, wirklich gemerkt, daß die Sirenen schwiegen, und hat ihnen und den Göttern den obigen Scheinvorgang nur gewissermaßen als Schild entgegengehalten” (Odisseu, diz-se, era tão astuto, uma raposa tão ardilosa que até a Deusa do Destino não conseguia penetrar em seu íntimo. Talvez, embora seja difícil compreender sob os ditames da razão, ele pode ter percebido que as Sereias estavam silentes, e meramente se opunha a elas e aos deuses tendo como escudo o ato dissimulado supradescrito.). Ao que parece, em uma pesquisa de seus textos disponíveis, Kafka não mais tentou ouvir a voz da Sereias. Não as cita em nenhum texto mais. Silenciou-as em si.


Adriano Nunes










quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Adriano Nunes: “Προμηθεύς” - para Gal Oppido

“Προμηθεύς” - para Gal Oppido


Aqui, estou para a contemplação
De todos. As inquebráveis correntes
Ferem menos que a arrogância exalada
De ti, ser altíssimo e insaciável!
A força bruta das tuas palavras!
Nunca é tarde para a tua vontade
De poder, para as astúcias estúpidas.
A pedra não me dilacera mais
Que o teu gesto calculado, divino,
De fazer com que o momento aconteça
Sob tua ordem, sob os teus desígnios.
Não morrerei, inda que as minhas vísceras
Sejam devoradas por ágil águia.
O que ganharás com isto senão
A prova de que não tens coração?
Não dirão de ti que és um tirano?
Não terão pena de ti, por usares
De toda a tua vil totipotência
Contra os que são os meros semelhantes?
Rirão de ti, certamente!
Por causa do fogo, a ira infinita
Contra a minha, a nossa gente?
Por que amei as minhas criaturas,
Bom fui para elas? Não as aturas
Da tua altura etérea, inalcançável?
Rirão de ti, de teu silêncio abjeto!
Acusar-te-ão de ser só um deus,
De dirigir todos os nossos passos!
Sofrimento mor do que o meu terás!
Incomodou-te o arbítrio que lhes dei?
Irritaste-te com os tais matizes
De liberdade, com as cores novas
Com que lhes recolori a existência?
Oh, Cronida corroído por seres
O carrasco de cada pensamento,
De cada impulso, da grã sensação!
Não há manhãs ou noites para mim!
Não vibram alegrias ou tristezas!
Há o ato e a memória desse ato
Rebelde, a ação contra a autoridade
Absoluta! Ah, imposição de culpas!
Nada há que não seja voraz vácuo!
Vingam o desafiar de infinitos
E um outro mistério a tecer acasos
Independentes de ti!
Desespero não me afeta, percebe!
Sou tão imortal quanto, mas mais leve!
Não preciso carregar o destino
De tudo nas minhas costas!
Não preciso sentar-me em trono olímpico,
Para instaurar instintos de potência!
Vê, eles são muitos e diferentes!
Já não se perpetuarão escravos
Dos teus caprichos titânicos!
Sim, volto a alertar-te: até esta pedra
Rirá de tua etérea covardia!
Confessa-te logo: sentes inveja
Daquela estirpe mortal?
Estou preso a eles, sei.
Mas, eles são humanamente livres!
Que raiva deves ter da liberdade
Alheia! Não te sentes livre, Zeus?
Que ódio deves ter do amor mundano!
Com que horror e temor teces a teia
Do que não mais pode ser como antes?
Não te ofendes enxergar, neste instante,
Tal ave faminta incapaz de fim
Pôr a uma simples e única víscera?
Não te sufocas saber-te violência
Contra o teu ser, enquanto me violentas?
Oh, duro castigo que impões a ti!
Oh, não vês que, ao castigares-me, apenas
Aplicas-te a pena cruel sem fim?
Chega! Aqui, entre rochedos,
Ave rapina e correntes,
Eu não quero mais pensar o que sentes!
Contempla, se possível, este mundo
Em que já não podes ser o juiz
E o acusador! O Assassino!
Contempla a tua excelsa podridão
Ante o fato inafastável
Das coisas apenas serem
Como são! O que mais são!
Pois eles já sabem dizer-te “não”!

Adriano Nunes