quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Adriano Nunes: Sereias e cera: Ὀδυσσεύς dado ao canto ou ao silêncio? – para Antonio Cicero


Sereias e cera: Ὀδυσσεύς dado ao canto ou ao silêncio? – para Antonio Cicero


I


Em sua Ὀδυσσεία, Homero, entre os versos 173 e 179, do Livro XII (“αὐτὰρ ἐγὼ κηροῖο μέγαν τροχὸν ὀξέι χαλκῷ/τυτθὰ διατμήξας χερσὶ στιβαρῇσι πίεζον:/αἶψα δ᾽ ἰαίνετο κηρός, ἐπεὶ κέλετο μεγάλη ἲς/Ἠελίου τ᾽ αὐγὴ Ὑπεριονίδαο ἄνακτος:/ἑξείης δ᾽ ἑτάροισιν ἐπ᾽ οὔατα πᾶσιν ἄλειψα./οἱ δ᾽ ἐν νηί μ᾽ ἔδησαν ὁμοῦ χεῖράς τε πόδας τε/ὀρθὸν ἐν ἱστοπέδῃ, ἐκ δ᾽ αὐτοῦ πείρατ᾽ ἀνῆπτον:”), canta-nos que Odisseu – este relatando em primeira pessoa ἐγὼ (eu) - corta uma massa redonda de cera em fragmentos pequenos que são esquentados pelas próprias mãos. A seguir, ele põe a cera nas orelhas dos seus companheiros para que não ouçam o canto das Sereias, alerta dado por Κίρκη (Circe) que, nos versos 159 e 160, se apresenta assim: “Σειρήνων μὲν πρῶτον ἀνώγει θεσπεσιάων/ φθόγγον ἀλεύασθαι καὶ λειμῶν᾽ ἀνθεμόεντα.” (“Primeiro ela nos mandou evitar a voz das maravilhosas Sereias e o seu prado florido.”). A palavra grega antiga para Sereia é Σειρήν (no caso nominativo singular, quando faz a função de sujeito). No texto analisado, a palavra Σειρήνων está no genitivo plural, fazendo, portanto, a função de complemento nominal, pois “a voz das maravilhosas Sereias”.  É preciso compreender ainda que não se trata de um simples aviso, mas de um oráculo, isto é, uma informação divina acerca do destino. E Circe deixa explícito que é para evitar a morte, pois nos versos 155 a 157, Odisseu relata a necessidade de todos conhecerem o que a deusa disse, para que não morram: ” θέσφαθ᾽ ἅ μοι Κίρκη μυθήσατο, δῖα θεάων:/ ἀλλ᾽ ἐρέω μὲν ἐγών, ἵνα εἰδότες ἤ κε θάνωμεν/ κεν ἀλευάμενοι θάνατον καὶ κῆρα φύγοιμεν”. Percebam que o verbo grego ἀλέομαι (ἀλευάμενοι) significa “evitar”, “afastar”, e a palavra θάνατος significa “morte” que, no texto, apresenta-se como θάνατον, ou seja, na forma acusativa singular cumprindo a função de objeto direto, isto é: evitar o quê? Θάνατον! Todavia, por que Circe afirma que Odisseu deve ouvir o canto das Sereias e os demais não? Por que ela quer dar esse privilégio apenas ao herói de Ítaca e não a alguns de seus companheiros, já que todos, obviamente, não poderiam ouvi-lo pois morreriam? Seria isso uma dádiva restrita a alguns (no caso, Odisseu) ou apenas o capricho de uma deusa apaixonada (a proximidade com a morte evidencia alguma espécie de prazer para os deuses?)? Por que Odisseu aceita ouvir o canto das Sereias sem ter a certeza de que os outros não ouvirão? Por que ele não tapa as orelhas, segundo o relato de Homero? Ou ele tapou as orelhas e nem mesmo Circe, os deuses, os companheiros e nem mesmo Homero sabia disso, já que o poeta grego costuma chamar Odisseu de astuto, sagaz, inteligente, usando epítetos tais como πολύτροπος (versátil, multifacetado), logo até no começo da Odisseia: “ἄνδρα μοι ἔννεπε, μοῦσα, πολύτροπον, ὃς μάλα πολλὰ/ πλάγχθη, ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν”? Seria outra astúcia do personagem que, enfim, liberta-se do seu criador e de todo o destino, até do leitor? 


II


 Passemos, agora, para a intrigante e instigante versão do mito contada por Franz Kafka em “Das Schweigen der Sirenen”. Kafka afirma que “um sich vor den Sirenen zu bewahren, stopfte sich Odysseus Wachs in die Ohren und ließ sich am Mast festschmieden”(para se proteger das Sereias, Odisseu tapou, com cera, as orelhas e fez-se atar ao mastro). Neste primeiro relato kafkiano, temos uma diferença substancial do relato homérico, pois o escritor grego disse que Odisseu não tapou as orelhas com cera, mas que chegou a ouvir o canto das sereias amarrado ao mastro. Vejamos: “ὣς φάσαν ἱεῖσαι ὄπα κάλλιμον: αὐτὰρ ἐμὸν κῆρ/ ἤθελ᾽ ἀκουέμεναι, λῦσαί τ᾽ ἐκέλευον ἑταίρους/ὀφρύσι νευστάζων: οἱ δὲ προπεσόντες ἔρεσσον.” (então elas falaram, enviando a sua linda voz, e o meu coração foi feliz em ouvi-la, e eu disse aos meus companheiros que me soltassem, acenando-lhes com as minhas sobrancelhas; mas eles prostraram-se em seus remos e remaram). Como poderia saber Odisseu que a voz das Sereias era mesmo bela, se não a ouvisse? Como saber que não era uma armadilha de Circe, senão ouvindo tal ὄπα κάλλιμον (bela voz)? É preciso compreender outro fato importante: as Sereias fazem questão de afirmar que sabem de todas as coisas que acontecem “ἴδμεν δ᾽, ὅσσα γένηται ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ” (verso 191, Livro XII). Se sabem de todas as coisas, certamente estavam “cons-cientes” de que Circe havia ajudado o seu estimado guerreiro, o astuto Odisseu. Se sabiam da cera e da proteção, insistiriam em cantar ou manter-se em silêncio? Conta-nos Kafka que “der Sang der Sirenen durchdrang alles” (o canto das sereias penetrava tudo). Parece agora haver um grande paradoxo, já que Circe disse que a cera protegeria a todos. Para Kafka, a arma mais poderosa das Sereias não é o seu canto, mas o seu silêncio: “nun haben aber die Sirenen eine noch schrecklichere Waffe als den Gesang, nämlich ihr Schweigen. Es ist zwar nicht geschehen, aber vielleicht denkbar, daß sich jemand vor ihrem Gesang gerettet hätte, vor ihrem Schweigen gewiß nicht” (agora, todavia, as Sereias têm uma arma ainda mais terrível do que o canto, ou seja, o seu silêncio. Pode não ter acontecido isso, mas é concebível que alguém tenha se salvado de seu canto, certamente não do seu silêncio.). O problema epistemológico que resulta disso é que Kafka não diz exatamente qual seria o poder desse silêncio, como ele agiria para que ninguém escapasse. Se ninguém escapou para relatar tal silêncio, como Kafka poderia saber disto? Homero não se atreve a tanto em sua ingenuidade brilhante. Para escapar desse labirinto de sentidos complexos, Kafka utiliza-se justamente das características que Homero dera a Odisseu. Assim relata, ao fim da sua pequena história, que “Odysseus, sagt man, war so listenreich, war ein solcher Fuchs, daß selbst die Schicksalsgöttin nicht in sein Innerstes dringen konnte. Vielleicht hat er, obwohl das mit Menschenverstand nicht mehr zu begreifen ist, wirklich gemerkt, daß die Sirenen schwiegen, und hat ihnen und den Göttern den obigen Scheinvorgang nur gewissermaßen als Schild entgegengehalten” (Odisseu, diz-se, era tão astuto, uma raposa tão ardilosa que até a Deusa do Destino não conseguia penetrar em seu íntimo. Talvez, embora seja difícil compreender sob os ditames da razão, ele pode ter percebido que as Sereias estavam silentes, e meramente se opunha a elas e aos deuses tendo como escudo o ato dissimulado supradescrito.). Ao que parece, em uma pesquisa de seus textos disponíveis, Kafka não mais tentou ouvir a voz da Sereias. Não as cita em nenhum texto mais. Silenciou-as em si.


Adriano Nunes










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