"Ah, eles não diziam só isso!" - Para Frejat
(I)
Chamo-me Yaliim, se é
Que ainda tenho um nome.
Fui sequestrada em minha aldeia
Ainda criança. Com outras crianças.
Umas estão mortas.
Outras pensam que estão vivas.
Eu também penso que estou viva.
O espelho tem-me feito aceitar
Que estou viva.
Já não tenho uma das mamas.
Arracaram-na no dente
Como se arranca um pedaço de manga
Quando a fome é grande.
Quando a fome é grande, grave, presente.
Já não tenho mais clitóris.
Arrancaram-no como se arranca,
Com as presas, o azol
Que se encrava na carne.
Eles diziam-me que eu era o sol do Saara.
Eles diziam-me que era as águas do Nilo.
Eles diziam-me que era o ouro negro
Que do chão jorrava.
Ah, eles não diziam só isso!
Eles mentiam.
Hoje procuro ver-me como o sol do Saara
E resta-me o frio de ser quem me peso e sinto.
Hoje procuro ver-me como as águas do Nilo
E resta-me a seca que assombra a minha alma.
Quase agora tentei-me ver
Como o ouro negro dos báratros profundos
E só pude constatar um branco na vista.
(II)
Chamo-me Yaliim. Sou sem mim.
Já não pertenço à tribo alguma.
Já não pretendo pertencer à tribo alguma.
Quando fui envelhecendo, ficando doente,
Jogaram-me na estrada do nada.
Eu era o estorvo da estrada.
Eles diziam-me que eu já não prestava.
Eles diziam-me que eu era o lixo da Somália.
Eles diziam-me que eu era a peste negra.
Eles diziam-me que eu era
Os esgotos de Kinshasa.
Eles mentiam.
Hoje procuro-me ver como o lixo da Somália
E não consigo sentir o mau cheiro
Que deveria vir das minhas escaras.
Hoje procuro-me ver sendo a negra peste,
Mas os meus mortos estão vivos,
Sempre vivos em mim.
Existir para que mesmo serve?
Quase agora procurei-me ver
Como os esgotos de Kinshasa,
Mas bueiros e dejetos não havia.
É só este vazio.
Um vazio feito mordida,
Um vazio que estupra e trucida.
Este imensurável vazio.
Para que me enfeitam as mágoas?
Ou essa ilusão
Que a expectativa de devir diz
Que um dia serei feliz.
O vazio que marca.
Adriano Nunes
Nenhum comentário:
Postar um comentário