domingo, 10 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Átimos" - para Carmen Silvia Presotto

"Átimos" - para Carmen Silvia Presotto


Para espantar os pássaros, os braços
Abre o espantalho. O vento forte bate
Em suas velhas palhas. Outra esvai-se.
Porém eis que se atreve um corvo a dar
Seu ar de graça sobre a mão de pano
E tralha. Cisca, bica, e já não há
Mão, mas um grácil ninho. Ora, para
Que sirvo se nem mesmo um corvo espanto? 
Pensa o espatifado espantalho. Nada
Parece contentá-lo. Os muitos grãos
Da fazenda furtados pelos pássaros
Permanecem. O sol cega seu olhar
Despido de farrapos. Nem um traço
De medo impõe às aves. Que dor vasta
Atinge-lhe os recheios! Bem será
Que o fazendeiro irá fora atirá-lo
Feito um trapo. Nem corvos nem as gralhas
Dão por isso. Disputam todo o milho,
Rasgam as vestes gastas, e até dançam!
Vez ou outra defecam sobre a face
Do estático artefato. Antes não
Era assim. Com a palha a brilhar tanto,
Nenhuma praga aérea ser capaz
Era de atormentar o seu pensar.
Resta um contentamento: a floração
Da primavera, a ágil esperança
De que do inesperado ninho nasça
Um outro sol, a arte de haver átimos.




Um comentário:

José Dias disse...

O poema não pode ser visto como "pequena parte; porção mínima". Ele traz consigo traços filosóficos da condição humana. Belíssimo poema.