sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Adriano Nunes: "Kalininka e as coisas todas" - para Roberto Bozzetti

"Kalininka e as coisas todas" - para Roberto Bozzetti


A tarde mesclada de caos e cinza
Faz lembrar Kalininka ainda
Dos sonhos que ela precisa possuir.
A carne está faltando. O gim
Está praticamente no fim.
Não há mais carvão. Só o frio
A corroer tudo que se construiu
De esperança e espírito.
Sobre a velha mesa, ratos riscam
A madeira, desenham o destino
De Kalininka. Falta a água limpa.
Falta pano para manga, e, à míngua,
O cão macérrimo o lodo solícito
Da existência lambe e finca-se
Na porta. Parece esperar o devir.
Parece também querer de Kalininka
Os seus sonhos de estio
E de armário cheio de vinho,
Vozes, vezes, nozes e farinha.
Falta a saída. Uma saída propícia.
Kalininka sonhar demais precisa.
Deita de lado. Mexe-se. Gira.
A cabeça é um rodopio
De caleidoscópicas feridas.
Um sonho não chega. Pisca
Os olhos. Aperta-os. Perdida
Em si, dá-se ao silêncio.
Brinca com a dor de amarelinha.
À varanda caminha.
Falta a gana. A vontade de sair
Até a mais próxima esquina.
Kalininka é do mundo vizinha.
A noite virá forte e faminta.
Ela sabe que a noite virá arisca.
Não há para as ilusões nova tinta.
Não há para os tormentos brilho
Outro. Tudo está por um triz.
Timidamente Kalininka ri.
Falta um corpo e um delírio.
Mas Kalininka forja-se feliz.
Ela sabe bem onde a angústia fica
De tocaia. Esquecera Ítaca
Desde a perigosa despedida
Dos seus afazeres com o lixo.
De suas crenças diz e desdiz
À beira do infinito íntimo.
Kalininka é só isso
E na realidade se abriga.

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