quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Adriano Nunes: "Gurkov e as peras podres"

"Gurkov e as peras podres"


Observa fixamente Gurkov
As três peras sobre a velha mesa.
Ele sequer sabe que as três peras 
Bem são o mundo todo. Vontade
De rir amalgama-se à vontade
De gritar de dor, como se quase
Nada mais valesse a pena. Mira-as,
Decifra-as pelo cheiro. Quem dera
Não fosse verdade não ter a
Verdade à vista, carniça e corte
Nas inconsequências do desejo.
Verdade gasta, vendida a prazo
Nos delírios do poder sem prazo.
As peras estão podres - eis os gritos
De ameaças à civilidade
Comportada, blasé e sem norte.
Nem a morte daria jeito nisso! -
Pensa Gurkov, já desafiado
Pela aparência impura das peras.
Que fazer com as três peras que
Cantam e dançam no breu da mesa
De pinho, cheias de sebo e séculos?
Gurkov ajeita os recantos éticos
Do tédio. Poderá ser que o átimo
De suspense se dissolva entre
A ânsia mais densa e os poucos dentes.
As peras estão podres. A vida
Surge cariada e carcomida
Pelo esfacelamento do gozo:
Tudo não precisa ser de novo
Covardia e remorso, silêncio.
As peras de tudo estão por dentro.
Acabaram de engendrar a lei
Capital: Gurkov não é mais rei!
Vão devorá-lo daqui a pouco.
Vão jogar seus restos aos mais moços,
Os que prometeram ser bons cães
De guarda. Os dóceis sem amanhãs!
Vão cuspir Gurkov, as peras podres.

Nenhum comentário: