domingo, 14 de agosto de 2016

Adriano Nunes: "Yuliayev e os restos do espelho"

"Yuliayev e os restos do espelho"


Já não basta para Yuliayev
Os pedaços do espelho
Espalhados sobre a mesa.
A vida tem sido tensa
Para todos, ele pensa.
Já não é mais a mesma
Desde que se viu pela
Primeira vez ao espelho.
Presente de Hera, atesta.
Por que os admira, atento,
Enquanto se fere adentro?
Yuliayev respira desejos
E desconfiança. Não segue
Mais a cartilha dos portentos
Inacessíveis ao peito.
Cada fragmento vítreo tece
Uma armadilha em sua mente.
Não é possível que todos tenham
Aquele monstruoso aspecto.
Ah, as serpentes, as serpentes!
Como vieram dar na cabeça?
E essas estátuas sem cor nem
Pretérito, pura pedra, plena perda?
Já não basta para Yuliayev
Ver o sol a pino, a mata verde
A esboçar imensidão e medos.
Os estilhaços são reveses
De si, a ameaça de ser
O que se quer ser, sem vendas,
Sem máscaras. Que sente,
A esta altura, Yuliayev, preso
De seus remorsos, de seus tempos
Ignotos e astutos. Culpar quem?
Os cacos vítreos o perseguem.
A vida segregada e roída seca
Os propósitos do entendimento
Enquanto existência e resto.
Yuliayev quer pagar o preço
Do descaso a que se impôs, certo
De que tudo é rima e metro,
Escandalosamente rima e metro.
Ah, essas revoltas serpentes!
Ah, essas estátuas silentes!
Que fazer ante os desenhos herméticos
Da esperança? Ainda os fragmentos
Ali parecem zombar do cerne de
Tudo, da carne trêmula e fétida,
Do gozo gonorreico da pressa!
Yuliayev recolhe o maior entre
Os pedaços reluzentes.
Os pulsos pululam ululantemente.
A seiva da sede de tudo cede
À ilusão de um outro dia.
Ah, essas traiçoeiras serpentes!
Ah, essas estátuas decadentes!
Tudo a feder depois da quimera!
Tudo a anoitecer como prece e
Pedágio! Que fazer com os nervos
Já sem norte, sem proezas?
Yuliayev, cansado de espectros,
Deita-se: a estética cega
Do desassossego impera.
Ah, essas serpentes sorridentes!
Ah, essas perturbadas pedras!

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