sábado, 31 de outubro de 2015

Adriano Nunes: "Hamud sabe que é agora" - Para Mauro Sta. Cecília

"Hamud sabe que é agora" - Para Mauro Sta. Cecília



 (I) 

Hamud decidiu ser um homem-bomba.
Ele não nasceu um homem-bomba.
Ele não nasceu para ser coisa alguma.
Não nasceu tendo crença alguma.
Como todos, convencido foi por isso,
Porque alguém lhe apresentou argumentos fortes,
Para um fim grandioso:
A felicidade imutável, para sempre.
Ele não sabe ainda o que é a vida.
Nunca lhe ensinaram a cartilha prática da morte.
Seus olhos sabem pouco 
Do que é miséria, fome, desespero, angústia,
Medo, solidão. Medo e solidão.
Essa é a cidade de sua existência.
Não consigo, aqui, encontrar nenhum trauma
Na infância, nenhuma sequela humana.
Seus vizinhos viram-no tornar-se o que é.
Sob véus, as moças até
Constatam que Hamud é mesmo belo.
Amanhã que falarão de Hamud?
Seus pais já estão velhos. São pastores sírios.
Sabem do calor do deserto e das ruínas que restam
De Palmira. Eles não sabem das sinapses de Hamud.
Seus pais já estão bastante velhos. Parecem felizes.
Hamud não lhes contou que explodirá em breve.
Ele não conta nada para ninguém.
Só disso sei porque quase agora,
Pude invadir o seu espírito inquieto.
Pensa ele que essa  inquietação é a liberdade.
Pensa ele que, depois de ter explodido,
O além-explosão devolver-lhe-á tudo,
Cada pelo, poro, cada extensão da pele,
Cada pedaço de músculo, 
Cada fragmento de osso,
Cada víscera, cada enzima, 
Cada mistério, cada desejo
Cada gota de sangue,
Cada inescapável instante,
Cada silêncio, cada gozo.
Ele até sonha com o harém que disso crê que advém.
São onze e quinze da manhã.
Hamud já não quer mais o sol ardente 
De cada amanhã. Não quer mais saber 
Dos berros das ovelhas, dos balidos dos cabritos.
Olha-se ao espelho. A barba ainda crescendo.
Hamud só tem trinta anos.
Cada pacote com explosivos ajeita cuidadosamente
Em volta de si, amarrando-os com firmeza.
Ele fez um acordo tácito com a esperança.
Ele não sabe que a esperança é traiçoeira.


(II)

A partir de agora não nos assustemos.
Hamud não sentirá dor alguma.
Para que a sua ação seja válida, acha, que não
Pode explodir sem mais nem menos.
Não é a explosão por si mesma, simples,
Que lhe conduzirá ao harém do além,
Do que ele só sabe por argumentos perniciosos.
Ela só terá importância, impõe a si, 
Se conseguir matar o maior número de pessoas
Que ele não considera mais seus semelhantes.
Hamud acaba de sair de casa.
São onze e cinquenta.
Alguns conhecidos o reconhecem e sorriem
Para ele. Ele os cumprimenta.
Ele não mais sabe por que os cumprimenta.
Passa por uma escola. Observa-a
Com atenção. Não, não fora a ordem lhe dada.
Passa por uma sinagoga. Segue
Em frente. Passa por uma embaixada.
De qual país será?
Caminha apressadamente.
Hamud está um pouco tenso. Sua. 
Parece tremer. Uma dúvida o alcança.
Ele só tem trinta anos. Pensa
Em seu pais já velhos e cansados.
Pensa em Saphira Yerutz.
Pensa em todos que precisam ser mortos
Ainda hoje.  Ele já fez a sua escolha.
Certamente não poderemos vê-lo mais
No almoço, com a sua família.
Hamud virará pedaços e interrogações.
Essas bombas não costumam falhar.
Elas não falham 
Como falham os humanos que as fazem.
Hamud passa por uma estação de trens.
As pessoas estão sendo as pessoas, 
Como podem, o quanto podem.
Hamud já não é mais Hamud.
Lembra-se de quando era criança.
Lembra-se de que não é mais aquela criança.
Volta-se para Meca. Agradece.
Consegue ver todas as dádivas
Que, sente veementemente, terá.
Hamud há muito deixou de ter um lar.
Subitamente, sente uma coceira por baixo
Das amarras. Saibamos, isso é nada.
Entra no trem. Uma algaravia estranha.
Tudo é sempre o mesmo nó, sem palavras.
Hamud sabe que é agora: é agora!
E explode.



Adriano Nunes 

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