domingo, 25 de setembro de 2011

Adriano Nunes: "Não me digam o porquê de tudo agora"

"Não me digam o porquê de tudo agora"



O Sol rasgara o dia, às pressas. Sei que Madame não quer saber de coisa alguma. A vida lhe dera o sopro do desassossego comum das senhoras solitárias, o temor de que algum espírito do passado invada a monotonia das sombras do lar e mude toda a rotina, o espanto insólito de que netos surjam, parentes de não-sei-onde apareçam, assombrações indesejadas neste momento. Há muito Madame não quer liames de convivência com o mundo. Trancada em sua casa antiga, decorada por ela mesma - Madame é arquiteta - Madame busca a inspiração para o seu livro de estreia, o seu mergulho na imensidão do cotidiano lá fora, a sua fuga do exílio, o seu desejo de existência. Há onze anos, o capítulo final parece não dar trégua. Há onze anos, as musas não lhe dão a ambrosia necessária para o desfecho sublime. Todo o seu canto é de dor e frustração.

'Então, retornando do campo, a mulher desfizera-se em pranto. O mundo não era outro.' Pronto. Madame certamente terminará o seu romance. Não esperemos por algo feliz. Madame já não tem a alegria das transas, à socapa, com os namorados da adolescência, já não se permite a crer em auroras, já não sonha com Antônio Carlos. Que houvera para que Madame se abrigasse na solidão como se ali a felicidade sempre estivesse? Não teremos a chance de ler o seu objeto precioso. Sinto que Madame é receosa demais para lançar o seu cosmo ao mundo. Será que os seus escritos são autobiográficos? E se algum crítico mesquinho e cruel desvendar o indesvendável e acrescentar os seus próprios sentimentos à obra de Madame? Ai, Madame suspira! Ela é quem se sente.

Não há o que temer. Madame é dela mesma. Procuro ver daqui do sonho algumas páginas para publicá-las, recontá-las. Madame está lendo o seu livro. A sua letra é um emaranhado de códigos. Não consigo decifrá-los. Observo algumas frases. Acho que ela disse que amava, que amou, que ama, que amará... Não sei, ao certo. Madame é perigosa, escreve para o infinito. Aproximo-me um pouco mais. Sinto a sua respiração ofegante. Ela percebe o meu espectro. Criamos um ao outro. Ela quer o quê? Que eu fique sem saber do último ato? Bum! Madame fecha o caderno de anotações. Avança ao armário de mogno. Retira uma chave do jarro chinês. O livro é a sua alma. Não me digam o porquê de tudo agora.





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