quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Adriano Nunes: "Cacilda e a caixinha de música"

"CACILDA E A CAIXINHA DE MÚSICA"


(para as minhas sobrinhas Rebeca e Yasmin)



Aquele entulho alojado no guarda-roupa era o habitat de duas pequeninas traças. Anastácia e Cacilda reinavam em seu mundo de panos velhos e mofados. Elas dividiam todo o seu tesouro têxtil com os fungos e os ácaros. Eram felizes, mas receavam do futuro, todas as vezes que bombas atômicas redondinhas, esbranquiçadas e ligeiramente perfumadas eram jogadas em seu terreno soberano.

Ficaram viúvas muito cedo. Seus maridos mal chegaram a roer o desbotado vestido de casamento da agora velha viúva Constantina. O espanador de Dona Sinhá também era um inimigo mortal. E... Lá vem novamente Dona Sinhá com os seus cem quilos distribuídos irregularmente, com as suas ancas balançando e parecendo um hipopótamo. Anastácia e Cacilda estavam velhas demais, e os seus esforços máximos eram microscópicos passos-miúdos.

--Ai, ai, ai! Quanta poeira, Jesus! Dona Constantina deveria doar esse monte de pano velho para algum asilo!

O espanador ferozmente sacudia camisas, vestidos, anáguas, saias, paletós, suéteres, jalecos, blusas, sobretudos, lençóis, toalhas... Cacilda voou longe e caiu tonta em cima de uma cômoda com gavetas, estilo colonial, de madeira de lei... Jacarandá? Cerejeira? Pinho?... Dentro da caixinha de música da velha viúva Constantina.

Anastácia até que tentou escapar aos golpes violentos e pesados, mas sucumbiu e foi esmagada contra a lateral direita do guarda-roupa.

--Ora, ora! Eu sabia que havia traças aqui!

Sinhá pegou a traçazinha esmagada, com seus dedos grossos e com artrose, e ficou admirando a criaturazinha por segundos. Depois foi ao banheiro e jogou no vaso sanitário a pobre Anastácia. Puxou a descarga e...

--Sinhá, venha aqui, minha linda!
--Já vou, Dona Constantina!
--Venha logo, mulher! Venha!

Os cem quilos decolaram como uma libélula em direção à sala.

--Que foi, minha Senhora?
--Sinhá, tenho um presente que lhe quero dar! Uma caixinha de música que ganhei da minha irmã mais velha quando eu tinha quinze anos. Pode pegá-la no quarto. É sua! Dê a sua filha Esmeralda!
--Oh, minha Senhora! Não posso aceitar isso!
--É sua! Fique com ela e não discuta! Mas antes traga o meu chá de erva cidreira e umas bolachas sem sal.
--Só um instante, Dona Constantina!

A cozinha era um espetáculo de beleza, luxo e limpeza. Porcelanas, pratarias, utensílios importados e modernos, talheres decorados, enfim, era o local da casa onde as duas anciãs conversavam e lastimavam a perda dos maridos.

O chá já estava pronto. Sinhá pegou uma xícara de porcelana chinesa, um pires, um guardanapo bordado e as bolachas. Retornou cansada à sala. Serviu a sua Senhora. Fez um gesto de quem sente dores na coluna e dirigiu-se outra vez ao quarto.

Cacilda, contente e confusa, percebeu que estava presa num porão azul de veludo. Quis subir, mas despencava em suas tentativas vãs. Estava exausta. Ficou quieta e, de repente, pôs-se a ouvir uma música. Mozart? Vivaldi? Bach? Não compreendia bem os sons e sonhou que era uma bailarina.

--Senhoras e Senhores, eis aqui a maior bailarina de todos os tempos! Cacilda!
E saltava, rodopiava, deslizava e sorria. Sentira os aplausos roçarem a sua alma.

--Ai!

Último suspiro. Sinhá não é dessas mulheres que têm pena de coisa alguma. Esmagou Cacilda ali mesmo contra o veludo azul da caixinha de música. Depois, limpou a sujeira e orou agradecendo a Deus por mais um dia de vida. A sua lombalgia ainda iria perturbá-la por muito tempo, e imaginou que era como traças roendo os seus ossos.





Adriano Nunes





Um comentário:

carmen silvia presotto disse...

Bom, gosto do estilo fábula deste conto... Pobre Cacilda, ai!!

Beijos.

Carmen