domingo, 25 de agosto de 2013

Adriano Nunes: "Dai-me os óculos"

"Dai-me os óculos"


Apesar de ter permanecido o plantão inteiro no centro cirúrgico, Eduardo não esboçava sinais de cansaço. Médico aclamado entre os colegas, doutor Edu dedicava-se à literatura tanto quanto à arte de Hipócrates. Vivia envolto dos livros de poesia e dos memoráveis romances e, às vezes, arriscava em tecer uns versos, tentando desvendar a si e toda a existência.

Sete da noite. Como esquecer? Sete em ponto. Entra no carro. Pega o exemplar do Livro do Desassossego, presente da namorada. Cecília é linda e inteligente. Lembra-se de que falta muito para o término da leitura, visto que esses dias foram de insólito corre-corre, de desafios ante o báratro dos acasos. A sua visão não é mais um Titã pronto para as batalhas olímpicas, mas ele engana a si ante a nítida necessidade. Nada de óculos, ainda. O amor infiltra-se em seu olhar enquanto o livro é posto na cadeira do passageiro, à direita. 

Dispara o carro, subitamente. O vigilante sequer repara que o doutor, aquele das gorjetas, partira. Pressa? Há muito as folgas não preenchem o seu mundo de vontades e sonhos. Que trânsito! Edu agora é faróis, buzinas, movimentos, curvas, semáforos e... Deus, Senhor Deus! Que se sucede nessa avenida em que dois carros se apresentam escombros, ferro retorcido, sangue, vidro e algaravia? Quanta gente! Quanta sirene!Quem será que está, ali, estendido, já com colete cervical, parecendo imergir em sombras? Não poder ser! Doutor Edu? Aproximam-se o conto e o contista feito lupa e constatam o corpo do jovem médico em coma. Chove no Rio de Janeiro.

Sete da noite. Como? Lisboa está angustiada. Ao menos, a Poesia. No quarto 30 do hospital São Luís dos Franceses, pouco a pouco, padece o poeta Fernando Pessoa. O álcool deixara uma marca irreversível nas laringes de grafite de Orpheu. As dores abdominais e a astenia profunda consomem o menino de sua mãe, mas não o impedem de perguntar: -Amanhã a estas horas, onde estarei?

Silêncio, entre os presentes. Quem chega, todo técnica e luz? 

-Senhor Fernando, sou doutor Eduardo, seu novo médico. Infelizmente, o seu quadro é grave, é um abdome agudo. Talvez, eu venha a operá-lo com urgência.

-Dai-me os óculos; solicita Pessoa, timidamente.

Eduardo não os entrega. Guarda-os no jaleco. Tudo se esgota em segundos...

-Preparem o centro cirúrgico! Preparem o centro cirúrgico! Paciente grave, com trauma cranioencefálico e abdominal fechado! É um médico! É um médico! Vivia envolto dos livros de poesia e dos memoráveis romances e, às vezes, arriscava em tecer uns versos, tentando desvendar a si e toda a existência!

-Bom dia, doutor Eduardo! Como estás hoje?

-Sinto-me melhor, obrigado! Digam-me uma coisa. Eu consegui salvar a vida de Fernando Pessoa?

Os médicos entreolham-se. 

-Que Fernando Pessoa? Algum paciente teu?

-O poeta português, responde aflito.

-Descanse mais um pouco, Edu. Depois de quase um mês em coma, é esperado que apresenta um quadro desses.

-Não estou cansado! Quase grita. -Consegui salvar Pessoa?

-Refere-se ao livro que estava em seu carro? Se for, o mesmo encontra-se sobre o criado-mudo junto com os seus óculos. Incrível! Foram os únicos objetos que resistiram à colisão.

Outra dúvida precipita-se no infinito íntimo do ser que se faz o menino de sua mãe. Oito horas. Somente a ilusão assiste à passagem do instante de medo. Lisboa deixa cair esta lágrima. Tudo se esgota em segundos.









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