"Dai-me os óculos"
Apesar de ter permanecido o plantão
inteiro no centro cirúrgico, Eduardo não esboçava sinais de cansaço. Médico
aclamado entre os colegas, doutor Edu dedicava-se à literatura tanto quanto à
arte de Hipócrates. Vivia envolto dos livros de poesia e dos memoráveis
romances e, às vezes, arriscava em tecer uns versos, tentando desvendar a si e
toda a existência.
Sete da noite. Como esquecer? Sete em
ponto. Entra no carro. Pega o exemplar do Livro do Desassossego, presente da
namorada. Cecília é linda e inteligente. Lembra-se de que falta muito para o
término da leitura, visto que esses dias foram de insólito corre-corre, de
desafios ante o báratro dos acasos. A sua visão não é mais um Titã pronto para
as batalhas olímpicas, mas ele engana a si ante a nítida necessidade. Nada de
óculos, ainda. O amor infiltra-se em seu olhar enquanto o livro é posto na
cadeira do passageiro, à direita.
Dispara o carro, subitamente. O
vigilante sequer repara que o doutor, aquele das gorjetas, partira. Pressa? Há
muito as folgas não preenchem o seu mundo de vontades e sonhos. Que trânsito!
Edu agora é faróis, buzinas, movimentos, curvas, semáforos e... Deus, Senhor
Deus! Que se sucede nessa avenida em que dois carros se apresentam escombros,
ferro retorcido, sangue, vidro e algaravia? Quanta gente! Quanta sirene!Quem
será que está, ali, estendido, já com colete cervical, parecendo imergir em
sombras? Não poder ser! Doutor Edu? Aproximam-se o conto e o contista feito
lupa e constatam o corpo do jovem médico em coma. Chove no Rio de Janeiro.
Sete da noite. Como? Lisboa está
angustiada. Ao menos, a Poesia. No quarto 30 do hospital São Luís dos
Franceses, pouco a pouco, padece o poeta Fernando Pessoa. O álcool deixara uma
marca irreversível nas laringes de grafite de Orpheu. As dores abdominais e a
astenia profunda consomem o menino de sua mãe, mas não o impedem de perguntar:
-Amanhã a estas horas, onde estarei?
Silêncio, entre os presentes. Quem
chega, todo técnica e luz?
-Senhor Fernando, sou doutor Eduardo,
seu novo médico. Infelizmente, o seu quadro é grave, é um abdome agudo. Talvez,
eu venha a operá-lo com urgência.
-Dai-me os óculos; solicita Pessoa,
timidamente.
Eduardo não os entrega. Guarda-os no
jaleco. Tudo se esgota em segundos...
-Preparem o centro cirúrgico! Preparem
o centro cirúrgico! Paciente grave, com trauma cranioencefálico e abdominal
fechado! É um médico! É um médico! Vivia envolto dos livros de poesia e dos
memoráveis romances e, às vezes, arriscava em tecer uns versos, tentando
desvendar a si e toda a existência!
-Bom dia, doutor Eduardo! Como estás
hoje?
-Sinto-me melhor, obrigado! Digam-me
uma coisa. Eu consegui salvar a vida de Fernando Pessoa?
Os médicos entreolham-se.
-Que Fernando Pessoa? Algum paciente
teu?
-O poeta português, responde aflito.
-Descanse mais um pouco, Edu. Depois
de quase um mês em coma, é esperado que apresenta um quadro desses.
-Não estou cansado! Quase grita.
-Consegui salvar Pessoa?
-Refere-se ao livro que estava em seu
carro? Se for, o mesmo encontra-se sobre o criado-mudo junto com os seus
óculos. Incrível! Foram os únicos objetos que resistiram à colisão.
Outra dúvida precipita-se no infinito
íntimo do ser que se faz o menino de sua mãe. Oito horas. Somente a ilusão
assiste à passagem do instante de medo. Lisboa deixa cair esta lágrima. Tudo se
esgota em segundos.
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