quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Esvai-se um ano de novo"

"Esvai-se um ano de novo"


Falta pouco. Algumas horas,
E o ano que novo fora
Não mais te consola.
Planos tantos, sonhos em mora...
Deixa tudo pra depois, ora!
E assim o ano passou. Opta
Por dias outros, chance novas.
Recolhe a ilusão que sobra.
Falta pouco. Não demora
E tudo parecerá distinto, fora
Da expectativa que se adota.
Amores perdidos, achados, notas
Para um diário, roupas da moda,
Saúde que vingara à prova
De tudo outra vez te cobra
A rígida conta - já te apavoras? -
Esquece a dieta não feita, goza
A possibilidade da próxima.
Esquece as baixas notas
Na escola do mundo. Que importa?
Daqui a pouco terás ótimas
Quimeras pra domesticar. É a forma
De ver sem suspeita que agora
Tudo dará pé. Mais te solta
De ti. Por cima dá aquela volta
Por cima e acima. Nada cola
Mais daquelas desculpas tortas
Que engendraste como rota
Para as tuas mancadas óbvias.
Daqui a pouco, fogos solta!
Tudo será devir. Comemora
A alegria de haver mais uma hora
Além daquela que antes era - olha! -
A única saída, a fechada porta.
Esvai-se um ano. Como tantos. A sombra robótica
Do que já há não te molda.
Gritos solta. Alto canta. Joga
O tempo contra o tempo. És obra
De ti. Sempre foste. Melhora-te.
O ano é a continuação só - não notas? -
Daqueles todos outrora.
Nada é mesmo novo se não optas
Por mudar-te a fundo, por normas
E outro matiz dar-te à tua história.
Deixa que a esperança doura
O que nem o acaso controla.
É assim a vida, a dinâmica mola
Dos desassossegos e glórias,
Dos risos e das ondas revoltas.
Que mesmo não brota?
Vê bem: tudo passa e não volta!


Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Novo Ano"

"Novo Ano"


Artimanhas
Além-lar
Outros mares
Outros barcos
Mais a amar

Tanta arte
Alma quântica
Folha e lápis
Face a face
Verdejar

Outros passos
Saltos táticos
Novos laços
Mais elásticos
Até lá!

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Yarislavich e o silêncio"

"Yarislavich e o silêncio"


Agora o silêncio desfaz-se.
Yarislavich não vive mais.
As três portas da casa abrem-se
Aos ventos vadios que passam.
O ranger dos móveis e cada
Ruído advindo da grã mata
Provam que o silêncio aplicado
Ao lar era um ato tirânico.
Sir Yarislavich da cidade
Saíra à procura da paz
Que fosse uma ideia de paz
Por pleno silêncio alcançada.
Barulho das gentes e carros
Irritava a alma bastante.
Parecia a saída o campo.
Os sonhos de silêncio tantos
Eram, eram quânticos mares
De totalidades viáveis.
Sir Yarislavich não pensava
Que até mesmo o canto de pássaros
Seria um estorvo implacável.
Projetou para a casa táticas
Capazes de sons abafar.
E conseguira! Nada, nada
De fora adentrava em seu lar!
Nenhum ruído da grã mata.
Por hora, escreve longas cartas,
Textos, poemas, soltas frases,
Tudo que em sua mente atraca.
Tédios, queixas, quimeras, raivas.
Ia pra passeios diários
Com abafadores fixados
Nos ouvidos. Só a palavra
Escrita, sob silêncio máximo,
Lida era que à vida dava
Algum sentido. Já não dá
Para revelar a ti, caro
Leitor, o que dentro das páginas
Há. Talvez só silêncios. Não
Mais que silêncios. Sua arte
Era decantar da palavra
A natureza da linguagem.
Antes de ao suicídio entregar-se,
Percebeu vozes tão estranhas
E tão familiares. Rápido,
Quis as orelhas arrancar.
Pareceu perdida a batalha!
Aquelas vis vozes de antes!
Aqueles conselhos de máquinas!
Quis chorar. Desistira. A mágica
Perdera a razão de ser. Cada
Instante do passado dava
As cartas agora. Risadas
De não sei onde aportavam.
Abrira a gaveta. Do quanto
De tudo, a mais secreta arma
Contra tudo. A mata um disparo
Ouve. Tudo apenas se faz
Silêncio. Sangue, sombras, ais


Adriano Nunes: "Nó confuso"

"Nó confuso"


Madrugada.
Talvez tudo.
Talvez nada.
Mais me iludo.
Que palavra
Rompe o escuro
Que se encrava,
Feito muro,
Em minh' alma?
Ser sem fuso -
Que me acalma?
Nó confuso.
Madrugada.
Qualquer rumo.
Mente alada.
Quase sumo.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Tarniarav e a graxa"

"Tarniarav e a graxa"


Os carros roídos, estragados,
Vieram fazer parte da salsa
Contagiante da lida já
Tarde. As peças férreas, sujas da
Graxa da existência, bem como estar
Parecem à mão que não é mais
Mão, a não ser gestos, giros, graxa.
A esperança desatenta passa.
Nenhum sonho se atreve a dar a
Última cartada. Das ferragens
Salta o corpo, sol e suor, quase
Às três da tarde. Tarniarav
Trabalha. Sua pele é a graxa.
É sob a graxa que se constata
Que há músculos tesos e vasos
Calibrosos. Não há distinção
Entre o que era e o que agora há.
Tarniarav age sem parar.
Vez ou outra alguém sente até tara
Nas suas mãos que graxa só são.
Fios, porcas, parafusos, tralhas,
Trapos enferrujados por lados
Tantos. Tarniarav costumara-se
Com frases de ferro, com a graça
Metálica sobre as placas mágicas
Dos elos mecânicos que falham.
E que a ele falam quando o lapso
Dos desejos cheira mesmo à graxa.
Tarniarav bem sabe que basta
O sol lançar-se alto pra dar-se
À vontade de ser todo graxa.
Alguém o seu peito esculhambara.
Até suas palavras são graxa
E transes de bateria e caixas
De marchas que não mais à saudade
Servem. Tarniarav só trabalha.
Agora é máquina: não tem sangue
Nos sentidos mais óbvios. Diante
Do olhar-farol queimado, repara
Que, do outro lado da calçada,
O seu ser de outrora dá risadas.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Oração" - Para Roberto Bozzetti​

"Oração" - Para Roberto Bozzetti​


Nem o céu
Nem a terra.
Ora, essa!
Só o ser
Que em mim erra.

Os Ensaios
De Montaigne e
O teatro
Mais dramático
Do inglês bardo

Que me mantenham
Antenado. 
E os poemas
De Pessoa,
Ele mesmo.

Já é de
Bom tamanho
Tal desejo.
Um inferno?
Só de Dante!

Paraíso?
Só de Milton!
Ao Deus Baco,
Muito grato
Pelo vinho!

Outros nortes
Sem um norte.
Todas Odes
Do latino
Vate, Horácio! 

Se possível,
Sob a firma 
- Ir < re > re -
Conhecível,
Ironias,

Alegrias,
Outros vínculos,
Bravo Brejo
Verdejante
E um quiosque

Para o que
Levo a sério.
Algum tino,
E só isso.
Amém, Auden!


sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Natal no caderno de versos"

"Natal no caderno de versos"


É Natal - vibram tão ligeiros
No caderno meros quartetos
De oito sílabas - têm feito
De tudo para ter um jeito

De decassílabos perfeitos
Ser. Estranhíssimo desejo!
Rimas pobres puderam cedo
Cantar hinos ao Deus Cordeiro.

O metro diz-se satisfeito.
O ritmo à festa outro enredo
Deu. Um astro cadente veio
Confirmar a vida no seio

Da ceia, de paz tudo cheio
Está. A harmonia, o recheio.
Não tem o poeta direito
A ter um décimo terceiro.

Poesia não é emprego.
Virá o dia derradeiro
Do ano, e poemas inteiros
Ainda sonham ser refeitos.

Odes modernas até mesmo
Querem vestir-se de sonetos.
O alterar-se do agora a esmo.
O devir do dia primeiro...

E tudo em verso como selo!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Lord Byron: "When we Two parted" (Tradução de Adriano Nunes)

“Quando nós nos apartamos” (Tradução de Adriano Nunes)



Quando nós nos apartamos
 Em silêncio e lágrimas,
O coração em metades
Para separar por anos,
O teu rosto frio e pálido,
O teu beijo mais gelado;
Certo que a hora agourara
Pesar para tanto.

Da manhã o orvalho
Frio imergira na face -
Figurou qual recado
Do que agora constato.
Teus votos estão quebrados,
A tua fama é suave:
Ouço teu nome falado,
E comparto da desgraça.

Diante de mim te tacham,
A meu ouvir mau presságio;
Um calafrio me ganha -
Por que foste demais cara?
Que te conheci não sabem,
Quem te conheceu bastante:
Por ti vou sofrer avante,
Tão profundo pra falar.

Em segredo nos encontramos -
Atormento-me calado,
Que teu peito a deslembrar,
Enganar a tua alma.
Se te encontrar, por acaso,
Após anos tantos,
Como eu devo saudar-te?
Com silêncio e lágrimas.


Lord Byron: "When we Two parted"


When we two parted 
 In silence and tears, 
Half broken-hearted 
To sever for years. 
Pale grew thy cheek and cold, 
Colder thy kiss;
Truly that hour foretold 
Sorrow to this.

The dew of the morning
Sunk chill on my brow —
It felt like the warning
Of what I feel now.
Thy vows are all broken,
And light is thy fame:
I hear thy name spoken,
And share in its shame.

They name thee before me, 
A knell to mine ear; 
A shudder comes over me —
Why wert thou so dear? 
They know not I knew thee, 
Who knew thee too well:
Long, long shall I rue thee. 
Too deeply to tell.

In secret we met —
In silence I grieve. 
That thy heart could forget, 
Thy spirit deceive. 
If I should meet thee 
After long years. 
How should I greet thee ? 
With silence and tears.



BYRON, George Gordon. "When we Two parted".In:____. The Oxford Book of English Verse 1250-1900. Chosen & Edited by Arthur Quiller-Couch. London: Oxford At the Clarendon Press 1912, pp. 688-689.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Do calor das palavras"

"Do calor das palavras" 


Apago as luzes do quarto.
O ventilador a 
Girar, o som que há
Lá fora, desse lado
De mim, tudo bem rápido.

Um insólito mar
De sensações e átimos.
Certamente, no barco
Da existência a singrar
O amor, sem boias, dado

A acasos, ao que já
Ultrapassa as instâncias
Semânticas da ação:
Se vos disser que não
Dei a torcer o braço, 

Mentindo estou, é claro.
Ao ver o amor nas águas
Revoltas, sem a chance
De emergir pra a emoção
De uma nova ilusão, 

Joguei-me às ondas bravas. 
Pra mim, é sempre um ato
De aventura apagar
As luzes do meu quarto. 
Os corpos sequer sabem

Do calor das palavras, 
Quando estamos bastante
Prontos pra tudo e nada,
Quando o sonho se gasta.
Boias? Refiz-me náufrago.

Adriano Nunes: "Tudo esvai-se"

"Tudo esvai-se"


Dos tigres
Dente-
De-sabre
Pouco se
Sabe.
Fósseis,
Teses e
Umas in-
Verdades.

Do sangue
Do mangue
Ao centro
Do des-
Matamento
Atlântico,
Só o cio
Do ataque
Covarde.

Num gesto
Direto,
A mão
Ergue o
Prédio
De aço e
Cabos de
Alta tensão,
Qual arte,

Até
O sonho
Elástico
De haver a
Civilização.
Quem sabe a
Camada de
Ozônio! À parte,
Esvai-se

Tudo. Aqui,
Na boca
Do coração,
Ainda posso
Arrancar-te,
Esperança,
Ou será
Mesmo
Tão tarde?


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Semente" - para Arnaldo Antunes

"Semente" - para Arnaldo Antunes


Nada acaba somente.
Nada acaba na mente.
Nada acaba no nada.
Nada acaba pra nada.
Nada acaba pra sempre.
Nada acaba: que nada!
Tudo acontece: tudo
É tudo de repente.
Tudo acaba sem mente.
Tudo é inacabado.
Tudo levado: a cabo?
Tudo acaba semente.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Arnaldo Antunes​: o maior herdeiro do popconcretropicalismo"

"Arnaldo Antunes​: o maior herdeiro do popconcretropicalismo"



Hoje, concluí a leitura do esteticamente belo livro "agora aqui ninguém precisa de si" (Companhia das Letras, 2015) do amigo estimado Arnaldo Antunes.


 Após as vanguardas, muitos poetas puderam usufruir de todas as opções estéticas por elas ofertadas. Uns tantos ainda se aventuram pelo concretismo como se este fosse algo fácil, como se a poesia concretovisual, ou melhor, o que se pode traduzir  e decantar da expressão joyceana "verbivocovisual" fosse experimental a ponto de validar como belo qualquer emaranhado de signos, como se engendrados pelo acaso fossem esses signos, sem qualquer labor. Há nisso um engano sério. A arte exigida pela poesia concreta é uma arte em que as faculdades intelectuais precisam trabalhar intensamente, para que o seu resultado estético possa ser considerado, primeiro como arte, e, a seguir, como belo. Hannah Arendt em "Entre o passado e o futuro diz que "apenas as obras de arte são feitas para o fim único do aparecimento." Poucos são os que conseguem tal façanha. Entre estes, Arnaldo Antunes é o que mais se destaca, o que consegue dar fulgor àquilo que, em aparência, parece ser o resultado de um simples ato sináptico. Herdeiro legítimo dos Campos, de Pignatari e de Grünewald, Arnaldo deve ser considerado não só como herdeiro de tais magnânimos mestres, mas a esse grupo deve ser prontamente incluído, porque, apesar de vir depois do, faz-se, a priori, parte do, por ser um poeta inventor-aperfeiçoador da geração Noigandres. Vamos ao livro! 

São 65 poemas que se movem para além-folha, espaço-página. De início, a existência questionada, no nada que é alguma coisa, que é nada, que é alguma coisa no nada que é. Qualquer coisa. Qualquer nada. Tudo-nada. Por trás da vidraça, o nada nos escapa para ser alguma coisa. A métrica certeira, com 6 sílabas tônicas, imposta/posta em cada verso central parece querer nos avisar de uma harmonia no nada, uma ordem repetitiva que gerará o tudo e que, no fundo, é nada. Do nada vem o tudo-nada, com aliterações e anáforas. É arte bela que se admira aqui. Segundo Immanuel Kant, "para a arte bela se requer imaginação, entendimento, espírito e gosto.". Há tudo isso já na abertura do engenhoso novo livro do Arnaldo Antunes.

O musicalmente belo poema "ileso em meu asilo" põe em jogo todo o conhecimento e espontaneidade tão familiares ao poeta. O agora em que tudo acontece. Se antes havia o nada, agora o agora prepara o impulso estético para o porvir da sala vazia em que o eu irá esvair-se um dia para ser útil/fútil. E o que mais se teme, acaba acontecendo. Não acaba somente. Acontece: e tudo se dissolve/envolve no ver/véu, no breu/céu da gravidade grávida de seus eus.  A poesia não pode mais, a partir daqui, conter-se. Tudo é possível. Dentro do im-possível.

Com "fruto e furto", Arnaldo recria a tentação e dá-nos a treva do futuro no cotidiano sagrado, livre de paraísos. O céu é mesmo um ciclo, um elo, um eco, um um. Com "toda mancha", vê-se a construção circular de um conceito, o de ponto: que pode ser uma mancha a partir do ponto de visão do observador astuto, que pode ser a ilha-mancha na alva folha ou lençol, quase gota de sangue, mais que gota. A busca da forma. Parece mesmo indicar ao leitor que o que importa é a forma, kantianamente a forma - onde o belo mora.

Melhor será que descubra o leitor a obra inteira que funciona como um todo, um todo poético que exige atenção, perspicácia, des-prendimento, porque, aqui, agora, dentro do que há, ninguém precisa de si. Por isso Arnaldo diz-se que é sem ele, e, nós, por encanto, por ele ser múltiplo, in-contido-in-contável, não sabemos que logo nos esqueceremos, se não pararmos para reparar o raio de ser, de sol, de soslaio. É preciso parar para reparar na grandeza, na beleza desse livro, herdeiro do infinito.




Adriano Nunes 

sábado, 19 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Os sapatos de Moriadonov"

"Os sapatos de Moriadonov"


Moriadonov é um gigante forte.
Agora ele será rei nesta história.
Após a morte dos dois reis da Sarquônia,
Não havia legítimo sucessor,
A não ser o grande Moriadonov.
Em verdade, confesso-lhes, ninguém gosta
Dessa notícia, da estranhíssima hipótese
De ele ser coroado o rei, o  novo
Monarca da Sarquônia. No entanto, outro
Herdeiro já não há. E que pode o povo,
Ligado às tradições, contra tradições?
Preferiu, assim, entregar a coroa,
Ao gigante com o sangue régio, nobre.
Essa ideia, ó servos, saibam, não é boa!
Moriadonov vive descalço. Só,
À-toa, numa cabana alta e longa,
No mais ereto dos montes. O seu nome
Fora dado pelo seu tio-avô, hoje,
Rememorado somente como um louco.
Moriadonov até que apreciou
Mesmo saber que será, a pouco, logo
Coroado rei, de tudo quase dono.
Conduzido ao castelo real, e posto
Que este era demais alto, ordenou
Que, primeiro, elevassem, o teto todo.
Isso prontamente efetivado foi.
Observando, atento, que todos na corte
Usavam bons sapatos, súbito, pôs-se
A berrar que lhe fizessem um de couro.
O tamanho do seu pé era um estorvo.
Ao melhor e hábil sapateiro foram.
Eis o sapato pronto: Tão belo! Novo!
Mas, ao tentar calçar, Moriadonov
Ficou vermelho, impaciente, nervoso.
Gritou, xingou, ordenou em grave voz
Que as mãos do sapateiro cortassem, pois
Não precisaria mais de artesão tolo,
Incapaz de fazer-lhe um sapato novo.
E as mãos de muitos sapateiros, de todos,
Foram cortadas. Quantas mãos! Então, sobre
O chão do reino sapatos foram, óbvio,
Proibidos. Por ruas, descalço o povo
Andava, pelo rei Moriadonov.
Quando dormindo, numa insólita noite,
No frio solo do seu quarto de ouro,
Moriadonov teve um terrível sonho:
Seria morto por uma mordida de cobra
No calcanhar. Tenso e assustado, acordou.
Queria que fabricassem uma bota!
Ora, senhores, não existia no
Reino mais mãos ágeis, capazes do labor.
Mestres de outros reinos tinham pavor
De fazer tal arte para ele.  Morto -
Pensava - serei! De medos livre, solto,
Moriadonov descalço se quedou.
E nenhuma cobra ousou morder o corpo
Do gigante. Aos poucos Moriadonov
Um norte percebeu cercar o seu cosmo
De solidão, silêncios e desconforto.
Tantos servos sem mãos, sem gestos, sem olhos,
Sem pés, sem orelhas, sem sombras, sem lógica.
Tudo estava para o soberano em ordem.
Porque as suas ordens eram sempre ordens
Legítimas. E eram as reais ordens!
Aqui tudo ardilosamente se pode:
Das dores à vida, do êxtase à morte!
Todos estavam sem a natural forma.
Cortados. Obedientes. Brutos moldes
Feitos de iras e rancores. E ordens!
Moriadonov ergueu os amplos ombros.
Foi à janela. Viu a cabana pobre
Que é ainda somente sua. Voltou-se.
Abriu gavetas. Pérolas, muitas jóias,
Diamantes, rubis, sonhos, prata e ouro.
Moriadonov era outro. Gritou
Como de costume. Altíssimo! De pronto,
Chegaram uns mil guardas. Disse-lhes: "fogo
Ponham naquela cabana podre, pobre!
Eu sou o grande rei Moriadonov!
Eu sou o grande rei Moriadonov!
Iremos declarar guerra a reinos outros!
Quero belos sapatos! Potentes botas!
Será sempre justa a nossa guerra por
Um belo sapato! Vão rápidos! Logo!
Descalço ficar mais não posso! Não posso!"




sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "De mim, ser tantos, agora"

"De mim, ser tantos, agora"


Estranho a mim sou, ainda
Que me reconheça em íntima
Investida de mim para
Tudo que me penso, dada as
Nuances do alheamento.
É que meu ser ferve adentro.
Talvez um longínquo porto
Seja o sol para que um outro
Eu seja, entre os mais fundos
Fossos do meu próprio mundo.
Como em sonho que é real
Pra o sonho, cru carnaval
De memórias, cortes tantos.
Já preso a quem me decanto,
Vejo, num lance, que sou
Tudo que em mim se fincou:
A natureza dos átimos
Sem volta, a vontade hábil
De dar novíssima volta,
De girar o olhar pra a porta
Que se abre quando sorrio, e
Deixar correr por um fio
O instante. Ir para fora
De mim, ser tantos, agora.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Por quê?"

"Por quê?"


Aqui, sangra o que se pensou
Erguer, o elo mais íntimo,
A vista para a rua,
A desatenção esculpida
No coração, um sorriso.
Ah, as previsões sem norte,
As desculpas sem carne,
Os remotos liames dos porquês!

Depois, tudo se emoldura
Na vida do que não é,
Na esperança já gasta e oca,
Porque sempre é mais e além,
Para o que tem sentido,
Para o que amanhece.
Depois, pode haver depois e
O interstício movediço do sonho.

Aqui, singra a palavra mundo,
Balsa informe a boiar nas águas
Revoltas das sinapses mais sérias,
Um instante... E tudo se precipita
Inconsolável, nas entrelinhas
Dos desejos. Um instante... E vi-me
Atravessando o deserto de ser-me.
As escolhas não são mesmo minhas?

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Que em mim comemora ?"

"Que em mim comemora ?"

O sono não vem,
Vem o verso agora,
Tudo até convém,
Tudo já devora.
O sono não vem,
Vem a ideia agora,
Um vai-e-vem
Que mais me apavora.
O sono não vem,
Vêm tantas anáforas,
Oxímoros vêm,
Que em mim comemora?

Adriano Nunes: "Teu próprio oráculo"

"Teu próprio oráculo"


Não te enganes. É fato!
Tudo é mesmo um conchavo.
Os grupos são fechados.
Há preferidos, dado
Que podem ser amados,
Desde os tempos mais bárbaros.
Não se lembram de Pátroclo?
Só que agora os espaços
Estão menores. Claro
Que só para os do lado
De fora. O céu fechado!
Não te iludas, meu caro!
Na lei da vida, fácil
Não está nem pra Átropos,
Nem pra Baco. Sê prático:
Não comeste o pão gasto,
Pelo Demo amassado?
Que fazias, diabos!?
Abre o teu olho rápido
Para o universo lábil
Das lábias e dos laços
Dos moldados larápios
Dos bastidores táticos,
Pois, vê bem, é no palco
Que os atos ensaiados
São só dissimulados.
Não esperes aplausos.
Não esperes sensato
Apoio, o bote inflável.
Entre o furado barco
E o resgate atrasado,
Nada. Nada sonhado
Salva-te de ser náufrago,
Se ficares parado
Como estás. Dá um passo!
Salta do próprio báratro
De nortes remendados
Qual consolo barato
Para o momento. Um passo
Para que possas, ágil,
Ser o teu próprio oráculo.

Adriano Nunes: "Papel rasgado" - para a minha mãe

"Papel rasgado" - para a minha mãe

Estou partido
Em vários. Cada
Pedaço, cada
Vez mais partido.
Estou cortado
Em muitos. Cada
Fragmento, cada
Vez mais cortado.
Estou ferido
No imo. Nada
Mais sinto. Nada!
Bardo ferido.
Estou rasgado
Por não-ser. Nada
Ouso ser. Nada!
Papel rasgado.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Iroadian precisa chegar à escola" - Para Alberto Lins Caldas

"Iroadian precisa chegar à escola" - Para Alberto Lins Caldas


Iroadian precisa chegar à escola
Às sete. Às oito, ainda agora,
Espera dentro do ônibus.
Há algo dentro do ônibus
Que precisa levar Iroadian à escola.
Talvez seja imagino ser o próprio
Tempo, a dor com seu comboio
Multicolorido, a angústia com
O seu séquito insólito.
Iroadian não chegará à escola -
O ônibus não se move.
Certamente o ponteiro aponta
Para mais de nove.
Para mais das dez, das onze.
O dia está muito quente. Hoje,
A vida está muito quente. Pode
Ser que seja culpa do calor
Das esperanças tolas, pode
Ser culpa da expectativa do leitor
Astuto que quer saber logo
Como termina o poema-conto.
Iroadian precisa correr. Tem pouco
Tempo para ser Iroadian . Ser o
Aluno do mestre Torbale põe
Em jogo ser o aluno do
Mestre Torbale. Há um jogo forte
Que se abriga no olho
De um e de outro norte.
O ônibus está fixo ao solo
Mas parece estar levando o jovem
Iroadian para a escola.
Não pensem que é um sonho.
Não pensem em nada pronto.
É o silêncio da luta, do corpo,
Do que se faz ser o cosmo todo.
Mestre Torbale ri: agora é por
Sua própria conta. Corra!

sábado, 12 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Que em mim também perdura" - Para Raimunda P. Martins

"Que em mim também perdura" - Para Raimunda P. Martins


Toda vez, folheando
As obras de Agostinho,
Paira sobre o meu ser
A lembrança cativa
Daquele instante da
Vida em que qualquer canto,
Qualquer norte, caminho,
Eram bons se por perto
A minha amada avó
Estivesse. A doçura
Que em mim também perdura.
A alegria no olhar.
A esperança de haver
O amanhã ante a face
Vista numa bacia
Com água, nas festivas
Noites de São João.
Ah, tolo coração
De poeta, por que
Bem buscas o que ainda
Vinga sagrado em mim,
O que não tem um fim?
Oh, vastíssimo mar
De inquietação! Já
Não basta saber que
Ela não mais está
Aqui, com seu rosário
À mão, com seu sorriso
Grácil, frágil, tão tímido?

Adriano Nunes: "O amor"

"O amor"


O
Prob
Lema

Os
Pro
Nomes

Eu
Tu
Nós

O
El
O

O
Im
O

Seus
Soltos
Sóis

Tê-los
In
Te

Ir
Os
Ver

Tê-
Los
Vê-

Lo
S em
Um

Ver
So

O
A
Br

Aço
Emb
Ar

Aço
S o
A

Mar
Em
Mim

Georgia Douglas Johnson: “Cosmopolite” (Tradução de Adriano Nunes)

“Cosmopolita” (Tradução de Adriano Nunes)



Não totalmente isto ou aquilo,
Mas forjada
De sangues estrangeiros sou eu,
Um produto da interação
De corações peregrinos.
Distante, já não distante, fico
Toda compreensão;
Do meu domínio
Vejo o débil dilema da terra;
Herdeira de força fundida sou eu,
Todo o entendimento,
Nem isto nem aquilo
Contêm-me.


Georgia Douglas Johnson: “Cosmopolite”


Cosmopolite

Not wholly this or that,
But wrought
Of alien bloods am I,
A product of the interplay
Of traveled hearts.
Estranged, yet not estranged, I stand
All comprehending;
From my estate
I view earth’s frail dilemma;
Scion of fused strength am I,
All understanding,
Nor this nor that
Contains me.




JOHNSON,  Georgia Douglas. The heart of a woman, and other poems. Charleston:  Nabu Press, 2010.      

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Complicado é fazer outro poema"

"Complicado é fazer outro poema"


Enquanto imerso em Bobbio, em Bourdieu,
Observo em volta tudo acontecer.
Umas linhas escrevo, com prazer.
Nos intervalos, Char, Fort, Mallarmé.

Resumo, fundamentos e o problema.
Complicado é fazer outro poema
Que do sol desse instante não esteja
Todo impregnado - ecos na bandeja

Do propício saber: mesclada meta
Que em mim faz-se concreta, clara, certa,
Que aponta para a ponte do que almejo.

Ah, quânticas quimeras de poeta!
Não seria melhor denso desejo
Do que este a mim preso e seu cortejo?

Adriano Nunes: "O que não pode ser apenas dito"

"O que não pode ser apenas dito"


Desprende-se de mim o que me penso.
Tudo em redor é vasto, mas vazio.
Tudo em redor é claro e por um fio.
Em mim finca-se o instante vago e tenso.
Desprende-se do imo o que me sinto.
Nada em volta se veste de contento.
Nada em volta se verte no que tento.
Em ser-me outros dá-se o labirinto
Que me sou, rima e ritmo, medo e mito,
Em que me escondo, pronto para ver
Qualquer verve forjar-me ou absorver
O que se quer demais, sumo e infinito,
O que não pode ser apenas dito,
O olvido dado ao íntimo, o viver.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Por isso"

"Por isso"


Já te tinha dito,
Brigar não precisa
Por isso, por um
Pedaço do que

É mesmo infinito,
Que para guardar
Não dá, pois nenhum
Pedaço de amor

É só um pedaço,
Novamente insisto.
Quem sabe, no máximo,

Para sonhar dê,
Em sonhos guardá-lo!
No peito? Que risco!

Adriano Nunes: "Antípodas"

"Antípodas"


Do lado de cá
Quem fica?
Pro lado de lá
Quem vai?
Talvez a vida...
Talvez a paz...

Pro lado de lá
Quem torce?
Pro lado de cá
Quem vibra?
Talve a sorte...
Talvez a lida...

Do lado de cá
Quem gosta?
Pro lado de lá
Quem luta?
Talvez a hora...
Talvez a busca...

E nessa divisa
Demais incisiva
E nessa disputa
Ferrenha, feroz
Não se enganem mais
A culpa é nossa

É de todos nós

Adriano Nunes: "Por que mesmo temer?"

"Por que mesmo temer?"


Não devemos temer
As velhas raposas!
Velhas e astuciosas
Raposas, as chocas!
Não devemos temer
As que ficam nas tocas,
De tocaia, à espreita,
À espera da hora
Certa, para o golpe
Fatal, as espertas
Raposas partidárias,
As de terno e gravata,
Sempre prontas para
Dar o astuto bote!
Não devemos temer!
Por que temer? Temer
Por que as raposas
Da retórica, das farsas,
Das próprias raivas?
Elas nunca foram caças.
Mas como elas caçam,
Sozinhas, agrupadas!
Não devemos temer
As velhas raposas,
As dos conchavos, todas
As da fácil falácia,
Das falcatruas, as que
Gabam-se por ser
Bastante engenhosas,
Ágeis enganadoras!
Por que mesmo temer?

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Et tu, Brute?"

"Et tu, Brute?"


Velho e certo ditado
Conta que quando o barco
Está para afundar
Os primeiros bem rápidos
A saltar, pular fora,
São, sem dúvida, os ratos.
As velhas ratazanas
Não piscam as pestanas
Sequer. Bastam ver a
Água por todo lado,
Sentir que serão náufragas,
Ligeiras, logo saltam.
Certo e antigo adágio
Popular diz que nada
É pior que nas costas
Aquela punhalada
Que por amigo é dada.
Ainda mais por carta!

Adriano Nunes: "Ah, velhas raposas e hienas!"

"Ah, velhas raposas e hienas!"


Ah, raposas, raposas velhas!
Ah, raposas e vis hienas
Que, de paletó e gravata,
Não se importam com nada mesmo,
E agora andam de mãos dadas,
Entre conchavos e segredos,
Tramando o que mais lhes agrada!

Ah, hienas, velhas hienas!
Ah, hienas e vis raposas
Que, em seus trajes de astúcia e gala,
Desfilam e a todos enganam,
E já não trocam farpas tantas,
Mas, ao contrário, as pazes fazem,
Em nome de embuste e inverdades!

domingo, 6 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Nesta noite"

"Nesta noite"


Nesta noite,
Quando noutras,
Quando nômades, 
Quando norma,

Soma e sal.

Nesta noite,
Quase nova,
Quase nódoa,
Quase nossa

Tela e tal.

Nesta noite,
Qualquer norte,
Qualquer nome,
Qualquer nota

Musical.

Adriano Nunes: "Proteu"

"Proteu"


ir
ir-me
ruir-me
instruir-me
construir-me
desconstruir-me
até reconstruir-me
e que ao ser-me rime

Adriano Nunes: "Construto"

"Construto"


Primo passo
Eu já está pasmo
Sem/com plexo
Eu já está perto
Tão sem pino
Eu já está pífio
Pouco a pouco
Eu já está posto
Tão sem prumo
Eu já está puro

Eis o ponto
Eu não estou pronto

sábado, 5 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "símiolacros" - para Alberto Lins Caldas

                          "símiolacros" - para Alberto Lins Caldas





ir
do ser ao signo
de mim a mim:
ir-me
a fundo, firme.
ruir-me
e roer-me a epi-
derme do si, símio-
lacro epicêntrico de si-
lêncios si
multâneos, simulácios, enfim,
construir-me: desmonstruir-me.
constatar-me in-
dissolussolvido - o mín
imo que posso fazer, isso,
por mim:
desconstruir-me, livre
de medos míticos
do astucioso íntimo.
reconstruir-me
íntegro. abismo
ab initio,
filme,
fio,
fim.  

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Nem o que não há sequer" - para a minha mãe

"Nem o que não há sequer" - para a minha mãe



Não é o mundo que o meu coração 
Quer nem o que não há sequer.
Às vezes, quer só sair dessa
Gaiola torácica, quer bater
Por outros matizes de amplidão,
Pelos labirintos íntimos do que não 
Pode ser apenas ritmo e eco.

Às vezes, é que em mim dá-se
O seu mistério de ser mais que carne.
Um engano métrico!
Talvez isso expresse o agora,
Essa tormenta de sentidos e angústias,
Essa solidão sem mesura,
Esse despertar descomedido.

Talvez apenas constate 
Um pouco do que fora a saudade
De mim, por em mim faltar-me.
Ou essa dor de existir,
Porque só existir já pesa.
Eu, Sísifo a amar a pedra,
A subida árdua, a descida frustrante.

Ilusões de estranheza num único lance.
Ah, e esses olhos de humanidade 
Sem norte, sem bússolas!
Tudo do até-mais-sentir-tudo
De mim se ocupa.
Não é qualquer lugar
Que o meu coração quer.

O amor é recanto pra o que é livre.
Não é qualquer tempo
Que o meu coração quer amalgamar 
Em cada batida intensa, única.
Ai, os desejos se dissolvem adentro, 
Mesclam-se a sonhos tirânicos,
À vez dos acasos!

Deve ser por isso que me penso
Mesmo triste.
Deve ser por isso que me desfaço,
Sísifo pela pedra encantado.
Deve ser por isso que a noite se alarga,
Construindo quimeras em minh'alma,
Deve ser a poesia, prisma que pulsa.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "Falta um liame a mais"

"Falta um liame a mais"


Às vezes, a voz vai
Em busca de nós dois.
Salta janelas, corre 
Atrás do trem já ido,
Morde o umbigo do íntimo
Do infinito, por nós.
Às vezes, bem descansa
No cárcere frenético
Da garganta. Seu modo
De não ser. E até canta.
É seu veraz comércio.
Mas nem sempre te traz.
Falta um liame a mais.
Às vezes, é só voz.

Adriano Nunes: "Metáforas enquanto nada"

"Metáforas enquanto nada"


Essa alva rosa, essas
Estranhíssimas promessas
De rosa, de dar-se à rosa,
De ser qual rosa, de formosa
Ser, com ilusão, às pressas.
Essa ilusão de jardim
No corpo, espinhos em mim,
Talas, folhas, cores, pétalas,
Cheiro de orvalho, quais essas
Metáforas enquanto nada.
Ah, por que me arrancaste,

Raiz, espinhos e caule,
Por que me atiraste à página
Anêmica dos desejos?
Agora quero ser cravo,
Crisântemo, solo e água,
Sereno, chuva, sol alto,
E tudo que em flor concebo,
Pra ter alívio ou placebo.
Ah, por que me deste - vejo-os!-
A todos os buquês e jarros
Do desassossego, ao amor?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Adriano Nunes: "À espreita, agora"

"À espreita, agora"


Antes da porta,
A rua em volta.
Antes da volta,
Aberta a porta.

Agora importa
A tua volta.
Antes, a porta
Aberta: a porta

Que era a ponte,
Um horizonte
A mais, um nome.
Que me consome?

Que mais se rompe,
Só? Outro nome
Além e longe,
O teu, qual fome.

Antes da volta,
A lua aporta
Antes - que porta
Mesmo conforta?

Tudo se dobra:
A rua e a porta,
Por tua volta.
Amor, não notas?

Adriano Nunes: "O sono de Trieminant"

"O sono de Trieminant" 



Desde o século dois
Que Trieminant os olhos
Não abre. Em coma 
Não está. Nem morto.
Apenas dorme, dorme.
Acordará logo, logo,
Antes do jornal das nove.
Talvez antes das oito.
Ela sabe que logo
Acordará. Pouco a pouco,
Irá estirar todo o corpo,
Bocejar e ver em volta
Tudo como tudo pode
Ser e estar. Que sonhos
Devem tê-lo invadido, por
Que demorou tanto por
Isso? Faz parte do
Jogo de Trieminant só
Acordar depois de todo
Esse tempo. Pouco
A pouco, erguerá a fronte,
Os ombros, a voz,
E pedirá, de novo,
Como antes, que lhe mostrem
Que ainda tem os tesouros
De Ualaroévnia em cofres
De diamantes e ouro.
Todos estão curiosos
Para saber que gostos
Terá Trieminant agora,
Depois de tanto tempo solto
De tudo que há no cosmo
Infinito, do que há lá fora.
Trieminant apoiou-se no
Mastro da cama e na cômoda.
Olhou para todos. Havia outros.
Repetiu o que lhe era óbvio.
Trouxeram-lhe os cofres.
Trouxeram-lhe a água forte.
Trouxeram-lhe as dores e o amor.
Ah, é o amor que importa
Para Trieminant! Que estorvo!
Nada disso mesmo importa!
Súbito, bastante trôpego,
Tombando nos velhos móveis,
Chega à janela. O mundo olha,
Põe os seus desejos à prova.
Põe tudo de novo à prova.
Ah, ele não quer mais a sorte
De não poder ir mais longe!
O dia parece que já some.
Dá uma gargalhada, retorna
À cama. E, sem dizer por
Que à janela fora, dorme.


Adriano Nunes

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Arish e a sua engenhosa invenção"

"Arish e a sua engenhosa invenção"


Chove muito forte sobre a tribo de Arish.
As crianças estão assustadas. Os bichos
Também. Ninguém entende por que isso.
Arish tem cento e dois anos. É o mais antigo
De todos. É o chefe de sua pequena tribo.
Ele não imagina que o seu clã no porvir
Será um vasto império, com teatros e ritos
Sagrados, com promessas de prêmios íntimos.
Chove muito forte. Os bichos gritam, gritam.
Todos querem saber o porquê disso.
Quando querem saber de algo visitam
A velha e estranha cabana de Arish.
É ele quem cria o mundo dos seus, mitos,
Lendas, verdades, ilusões, sonhos, mentiras.
Ele não sabe que tudo que ele inventa brilha
Nos olhos dos seus dia após dia.
Hoje Arish vai explicar o surgir
Da forte chuva e do vento frio.
A sua grande invenção, ele imagina,
Só será no dia de sua morte dita.
Quase agora a todos os homens pediu
Que matassem dois carneiros, disse,
Depois, que retirassem as vísceras,
Que eles chamam de bofes e tripas,
Que as pusessem num caldeira de zinco,
Com gordura de camelos e água do rio
Tatzarjid, que fervesse tudo, que, à vista
Das crianças fervesse tudo, de nítida
Forma, à vista das crianças pequeninas.
Por que Arish à vista delas isso fazia?
Por acaso ou malabarismo mágico, digo,
Feitiço, crença ou algo desconhecido,
O certo é que a chuva neste instante finda.
As crianças brincam em volta das cinzas,
Na lama, elas no que veem acreditam.
Arish irá morrer logo logo, daqui
A pouco, rodeado dos seus, no pio
Da noite, rodeado de suas invenções míticas,
De seus pesadelos e astúcias, da vida
Que deu a todos. Mas, antes da despedida,
Dirá, som por som, a todos os seus filhos
Como se formou o mundo, o infinito.
Quase nada diz. Quase, por um triz!
Ele não sabe como dizer, insiste, insiste,
Sabe que é o mais velho de todos, triste
Parece, mas não está. E, súbito, diz
Que o infinito e tudo que há foi gerido
Por um furor fortíssimo, o amor, é isso.
Arish não sabia que um dia poderia
Criar um poderoso império, um circo
Policromático de solidões e sentidos.
Ele não sabia que outros nomes dariam
À sua engenhosa invenção, ao seu mito,
Que iriam moldá-lo, desconstruí-lo.

Adriano Nunes: "O que me afaga agora"

"O que me afaga agora"


Estes são os meus dedos
Delicados, têm medo
De segurar a rosa,
De folhear o livro
Antigo, de saber
Das quimeras mais táteis,
Do lápis sobre a mesa,
De ferir-se, cortar-se,
Medo de que apareças,
De percorrer, sem jeito,
Do teu corpo as metáforas,
O que possa ser isso,
O que me afaga agora,
De um possível prazer...
Estes são os teus dedos?

Adriano Nunes: "Tragédia cibernética"

"Tragédia cibernética"



Em um site conheci-te.
Em meio a medos e-mails
Somente aflitos trocamos.
Depois nos enveredamos
Pelas redes sociais
Até não ter tempo mais
Pra coisa alguma, nem mesmo
Pra ver-nos. Era só print,
Selfies e curtidas e
Iguais compartilhamentos,
Até a wi-fi seguinte!
Vídeos, chats, perfis, alarmes...
E vivíamos por dentro
De tudo de um e do outro.
Como o mundo era pouco!
E, vez ou outra, check-in
Em algum lugar, enfim,
Em que nós jamais estávamos.
Até que acabou o amor,
E com um click bloqueaste-me.

sábado, 28 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Ser-me, até ficar tonto"

"Ser-me, até ficar tonto"


Eu sou o que não vem,
Como se fosse quem
Pudesse mesmo além
Estar de si, por bem
Ou mal, quase ninguém.
Depois é que me encontro
Nalgum estranho ponto
Em mim. E não há como
Ser-me, até ficar tonto.
Suponho que me exponho
Por ser quem sou, em sonho,
Até não me ser. Pronto:
Sou? O ser que me tem
Não me contém também.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Não desiste o acaso" - Para Fred Girauta​

"Não desiste o acaso" - Para Fred Girauta​



Não desiste o acaso
De fazer de tudo pouco caso. 
Vem às vezes fantasiado
De alegria, engano ou engasgo. 
Vem às vezes sob o passo 
Trôpego qual de um velho carrasco, 
Ofertando a forca e o cadafalso. 
Vem - ó várias vezes vem! - disfarçado, 
Coberto com os gastos trapos
Da  traiçoeira esperança, 
- E como a valsa da vida dança! -
Às vezes vem sob máscaras
E parece que dita o tudo-ou-nada,
E parece que dura, enquanto passa.
Vem às vezes fazendo graça, 
Pirraça, palhaçada, até piadas
Sobre por que vem, é claro,
Vem qual lance inexplicável,
Sobre o tabuleiro dos fatos, de dados
Por si treinados, numa aposta furada. 
Vem diversas vezes trajado
De gala, com grácil fala,
Dá-nos a mão, tão educado!,
Quer-nos ao lado, quer-nos levar às
Profundezas de íntimos báratros.
Não desiste o acaso
De fazer de tudo pouco caso.
Por fim, quando amargo e cansado,
Atira a sua última carta:
À socapa, pede o apoio de Átropos,
Não quer saber mais de papo,
Grita: corta o fio, corta o fio, rápido!

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "No que existe"

"No que existe"


Mais feliz
Ou mais triste,
Bem me fiz
No que existe.
Tudo quis,
Tudo em riste.
De algum bis
Quem desiste?
Dá-me um giz!
Tudo insiste
Em ser chiste!
O amor diz.
Por um triz,
Não persiste
A dor. Quis-te,
Cicatriz!

Adriano Nunes: "Cegamente no que ousou"

"Cegamente no que ousou"

Tão desnorteado o amor
Que nem a si mesmo achou.
Dias e noites, amador,
Cegamente no que ousou.
Quaisquer rumos, rotas ou
Quaisquer regras a supor,
Nenhum sonho se mostrou
Leve ou ameaçador.
Tão sem fulgor, tão sem cor -
Eis a que ponto chegou.
O, libérrimo leitor,
Dize-me, se possível ou
Se por pena ou por favor,
Com quais as asas voou
Aquele lírico amor
De livros, que me animou!

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Adriano Nunes: "Poesia e urbanidade" - Para Antonio Cicero

"Poesia e urbanidade" - Para Antonio Cicero




Por ter sido convidado pelo SESC nacional para participar da mesa redonda "Poesia e Urbanidade", na Sétima Bienal Internacional do Livro de Alagoas (22 de novembro de 2015), ao lado dos poetas Antonio Cicero e Tainan Costa, fiz este pequeno ensaio. Inicialmente, cabe dizer que a palavra "urbanidade" abrange múltiplos significados, tendo, principalmente, como os mais frequentes, os usados para: 1) referir-se à cidade, ao grande centro citadino, como uma oposição à ruralidade; 2) referir-se à civilidade, isto é, ao que é civilizado em oposição ao que é bárbaro.

Assim, a palavra "urbanidade" tem origem latina, vem de "urbanitas"/"urbanitatis" que significa morada, morada na cidade (Roma, a cidade por excelência), civilidade, elegância, graça de linguagem. "Urbanitas" possivelmente vem de "urbs/urbis" que significa cidade ou população de uma cidade. Logo, "urbanus" seria o urbano, o civilizado. E "urbane", com urbanidade, civilizadamente, espiritualmente, polidamente.

O grande desafio seria relacionar urbanidade e poesia. Que critérios seriam possíveis de mesclar ambas as esferas, que relações íntimas haveria entre a poesia e urbanidade. Portanto, precisaríamos fazer alguns questionamentos e respondê-los:

1) A poesia é urbana? Em que sentido? Sua origem é urbana, isto é, deu-se na cidade? Ou nos arredores da cidade? Ou sua origem é anterior às cidades?
2) Terá sido (ou é) a poesia fator indispensável para a civilidade, para a formação da urbanidade (em qualquer sentido que a palavra originalmente seja empregada)
3) Os poetas se preocuparam, em algum momento, com a civilidade, com a urbanidade? Se sim, ainda se preocupam?
4) Que pode a poesia contra a barbárie?
5) As cidades cantadas pelos poetas

Estes questionamentos iniciais precisam de uma investigação minuciosa, rigorosa, o que, aqui, neste momento, não irei fazer, porque adianto-lhes que me interessa apenas a superfície explícita e visível do tema para que eu possa expor, sob os ditames da razão, algumas relações interessantes que há/houve entre poesia e urbanidade, senão vejamos:

Para Lewis Mumford,  as cidades passaram a existir: "nos primeiros aglomerados ao redor de um túmulo ou de um símbolo pintado, uma grande pedra ou uma caverna sagrada, temos o início de uma série de instituições cívicas que vão do templo ao observatório astronômico, do teatro à universidade".

Possivelmente, a poesia é anterior à civilização no sentido de "civilitas", pois, inicialmente oral, praticada por aedos, deve ter contribuído para a formação da "urbanidade". Outro fato importante que deve ser lembrado é que os poetas participavam ativamente do processo civilizatório, tanto é verdadeira esta afirmação que Platão praticamente os excluía da sua "República" ideal, pois a influência dos poetas poderia "perverter"/ "desvencilhar" os jovens, enquanto aprendizes em formação intelectual, das regras da ditadura do conhecimento platônico. Na "cidade" idealizada por Platão, a poesia era uma "persona non grata". Eis que no Livro III da República, ele diz que as palavras “quanto mais poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser livres”. Na tradução primorosa de Allan Bloom (BLOOM, 1991, p. 64):

"We'll beg Homer and the other poets not to be harsh if we strike out these and all similar things. It's not that they are not poetic and sweet for the many to hear, but the more poetic they are, the less should they be heard by boys and men who must be free and accustomed to fearing slavery more than death"

Pois, para Platão, importava a “verdade” e não “imitadores da imagem da virtude”, "shouldn't we set down all those skilled in making, beginning with Homer, as imitators of phantoms of virtue and of the other subjects of their making? They don't lay hold of the truth” (BLOOM, 1991, p.283)

Mas a cidade, o centro urbano, também não era bastante do agrado de alguns poetas, é o que parece no começo. Muitos preferiam o isolamento, o silêncio dos campos, da vida dada à natureza e à paz, para assim poderem escrever os seus poemas. A exemplo, o grande Horácio, Quintus Horatius Flaccus, que preferiu residir na região sabina, perto do Monte Corgnaleto, sob o sossego campestre, visto ter recusado o convite de Augusto, que o desejava como seu secretário. Ao contrário do que Platão afirma sobre os poetas, de eles não se preocuparem com a verdade, Horácio diz em sua Sátira Primeira “Investiguemos seriamente a verdade”. Outros preferiam o cerne das cidades, pois havia nestas, como em Atenas, competições poéticas que davam aos poetas louros, glória, fama.

Pode ser também a cidade uma algaravia, uma babel, uma multiplicidade de sons e imagens, como podemos perceber pelo impactante e intrigante poema concreto-visual do mestre Augusto de Campos:

“Cidade City Cité”

atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubri
mendimultipliorganiperiodiplastipubliraparecipro
rustisagasimplitenaveloveravivaunivora
cidade
city
cité

As cidades dos poetas podem ser tanto reais quais Roma, Atenas e Troia tão cantadas pelos antigos, Lisboa (Fenando Pessoa), Recife e Sevilha (por João Cabral de Melo Neto),  Barcelona (Alex Varella), Rio de Janeiro (por Antonio Cicero), Maceió (por Lêdo Ivo) quanto imaginárias quais Ítaca, Macondo, Atlântida, Pasárgada e muitas outras que o imaginário humano foi capaz de inventar.

Os acontecimentos nas cidades, as pessoas, os lugares, tudo foi, é e pode ser cantado pelos poetas. Até a possibilidade da chegada de bárbaros (que não chegam, para desencanto de todos!) – “Porque é já noite, os bárbaros não vêm” - como fez, com toda a beleza, Konstantínos Kaváfis em seu magnânimo poema “À espera dos bárbaros”. Ou os poetas constatam o modo de vida nas cidades como fez Fernando Pessoa sob o heterônimo Alberto Caeiro “nas cidades a vida é mais pequena”, em “O Guardador de Rebanhos”. Tema para um tratado ad infinitum, decerto. Abaixo um poema que consta em meu livro “Laringes de Grafite (Vidráguas, 2012):

"Eu não sei cantar cidades"



Eu não sei cantar cidades.
A minha é bela.
Que bom para ela.
Possui pássaros tantos
De variados cantos,
Peixes exóticos que expressam ódio,
Pedras que gritam
Pelas pontas dos dedos,
Planaltos de altos e baixos,
Planícies de disse-não-disse,
Becos de palavras distraídas,
Ruas que precisam ser digeridas,
Uma ponte pênsil,
Postes postos em prontidão,
Praças que abraçam alegrias
E graças - Às vezes,
Algum incidente que machuca.
Gente?
Eu não sei cantar cidades...
A minha é bela.
Que bom para ela. 


Ao menos, uma coisa é certa: a maior de todas as cidades, o maior de todos os lugares é a poesia, a própria poesia. Nela tudo pode ser criado, tudo pode destruído, tudo pode ser reconstruído, tudo pode ser  engendrado sob os matizes múltiplos da imaginação, com as palavras escolhidas para serem as melhores, na ordem que parece ser escolhida por elas. É a poesia capaz de “lançar mundos no mundo” como escreveu precisamente Caetano Veloso em sua canção “Livros”.


Adriano Nunes