sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Que fechem os olhos os meus amigos!"

"Que fechem os olhos os meus amigos!"



Veio ter com as Górgonas, ainda
Cedo. Não as encarou por receio,
Mas, como era difícil saber
Qual seria a Medusa das três feras,
Buscou o humano traço entre elas.
O que descende da Chuva de Ouro
Pelo reflexo do escudo observou
Das serpentes em movimento as sombras
Que em sua direção vinham, e logo
O resplendor da lâmina projeta-se
Sobre o insólito pescoço do monstro.
Polidectes outra astúcia arquitete,
Pois a cabeça viperina, em breve,
Receberá. Permanece Perseu
Vivo e esvai-se veloz. Ouvem-se os urros
De Euríale e Esteno. À tez do pavor,
A volta para Sérifo... E vos digo:
Que fechem os olhos os meus amigos!

Adriano Nunes: "Mas não é só isso apenas"

"Mas não é só isso apenas"



A construção se faz pouco
A pouco. O esqueleto estético
Segue o seu trajeto de
Sol para ter algum norte -
Cimento, tijolos sobre
Tijolos e logo a obra
Projeta-se em seu propósito,
E evita a lógica, o óbvio.
Metáfora por metáfora,
Metro ante metro, o ritmo
Imprevisível dos versos
Dá-se assim por descoberto.
O prédio de sons e signos
Traspassa o indizível, pois
Tudo vingará depois
Que for dado à expectativa
Dos leitores e dos críticos -
Certo é pintar o edifício
Co' as cores do raciocínio.
A fachada aberta à vista
Do que pode a prosa, a arte
De desvendar o poema -
Mas não é só isso apenas:
A voz de Paulo Sabino,
Mistério de haver mistério,
Anotações no caderno
De rabisco, o esforço nítido
Para divulgar o cosmo
Imperecível que vai
De Cicero a Safo, até
De Bandeira a Baudelaire.
Palavra sobre palavra,
A casa se monta e nada
Parece faltar à peça.
O ethos, o pathos, o moto-
Contínuo, e o olhar se dispersa.
A criação se fez pouso
E ponte. O arcabouço estético
Chega ao seu percurso de
Sonho para virar ode.

Adriano Nunes: "Só" (para Antonio Cicero)


"Só" (para Antonio Cicero)









Sem
     Seu
           Ser

Sol
     Sem
           Céu

Sal
    Sem
          Mar

Sim
      Sem
            Som

Sul
    Sem
          Lar

Sem
       Vós
             Eu

Sem   
       Mais
              Voz

Sem
       Ter
            Vez

Sob 
      Tal 
          Véu   

      




quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "De verter-se no outro, a grã vontade"

"De verter-se no outro, a grã vontade"



Há palavra no corpo, aquela chama
Intensa que não cessa e muito clama
Pela hora dos músculos e atritos,
Olhares frágeis máxime finitos.

De verter-se no outro, a grã vontade.
Átimo de alegria que até invade 
O ser-não-ser, a hipótese, o perigo
De imaginar que o outro é o inimigo.

De tíbias e de rádios, embaraços
Mecânicos. De lábios, lábis laços
Que se lançam ao ato decisivo:
Como não ser do amor um fugitivo?

Valeri Petrov: "Cry from Childhood" (Translated to English by Richard Wilbur)

"Um grito da infância" (Tradução de Adriano Nunes)


Por que isso afligir-me tem que vir,
O súbito, agudo, e onírico grito
De crianças chamando "Valeri!"
Lá fora no logradouro contíguo?
Não é pra mim, esse apelo infantil;
Tristemente, não é pra mim de fato.
Estão chamando um outro, meu sutil
Homônimo que reside do lado.
Apesar de tais estorvos, admito,
Estão afligindo o meu raciocínio,
Mantenho o que sinto pra mim, pois isto
Poderia ser cômico, no mínimo,
Se, do seu alto e aplicado retiro,
Um velho esguio inclinar-se pra falar
"Não posso sair" aos que me refiro,
"Não estou autorizado a brincar."


Valeri Petrov: "Cry from Childhood" (Translated to English by Richard Wilbur)

Cry from Childhood

Why must it come just now to trouble me,
This sudden, shrill, and dreamlike cry
Of children calling “Valeri! Valeri!”
Out in the street nearby?
It is not for me, that distant childhood call;
Alas, it is for me no more.
They are calling now to someone else, my small
Namesake who lives next door.
Though such disturbances, I must admit,
Are troubling to my train of thought,
I keep my feelings to myself, for it
Would be comical, would it not,
If, from his high and studious retreat,
A gaunt old man leaned out to say
“I can’t come out” to the children in the street,
“I’m not allowed to play.”



PETROV, Valeri. "Cry from Childhood". In:____.The poetry of Men's Lives: An International Anthology". Edited by Fred Moramarco and Al Zolynas. Athens: University of Georgia Press, 2004, p. 10-11.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "De miragens e memória"

"De miragens e memória"



Esta angústia a agarrar a
Minha hora mais preclara,
A corroer o que sinto, 
Lançando-me ao labirinto
De miragens e memória.

O alicerce do artifício
A suportar o indizível, 
A decretar como ordem
O sonhar, o que se pode.
E tudo é chegar ao tálamo!

Ó veraz vestígio de
Totalidades! Ó norte
Almejado! Onde está
A saída que o olhar já
Procura por todo lado?

Adriano Nunes: "Com matizes outros"

"Com matizes outros"



Há uma dor
Que insiste vingar
Em tudo que eu sou.
Ela não passa
Com Doril ou Anador.
Ela perpassa
As entranhas da casa,
Faz pirraça, só
Quer que eu saiba
Discernir bem a sua marca.
Vez ou outra sobe
Pelas paredes da memória,
Contorna os propósitos
Do que possa haver lá fora,
E chega aos versos para
Que apenas haja lágrimas.
Dor e só.
Há uma dor
Que em mim se processou
Desde que cada olho
Pintei com matizes outros -
A vontade de ter asas,
Ser Ícaro, mesmo que o voo
Dê em nada.
Ela não cessa com
Aspirina, paracetamol.
Nem com morfina ou
Com analgésicos dos bons.
Que ímã é o Sol!
Agora, pelo retrovisor
Das falhas táticas de socorro,
Percebo o risco que corro.
O amor é um mar revolto.

Adriano Nunes: "De um só momento" - Para Thiago Reinaldo

"De um só momento" - Para Thiago Reinaldo


Entre o contato
Inesperado e o
Que se dá pronto
Pelo kimono,
O sumo, o sonho
De um só momento,
O corte, o Norte
Que é mais que um golpe
Atento, adentro.
O espaço alto,
Da carne ao cerne
Do que se mede,
Um embaraço
De pernas, braços,
Tão de repente,
O que mais quer
Que se decante
Sobre o tatame:
Esse liame
Do tudo ou nada,
O gesto, a garra
Que ao pano prende-se,
Sacro suspense,
Técnica e tática
Que o solo afaga.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Something else to be known"

"Something else to be known"



He is so sad.
It is not love that withers.
He is so sad.
It is not money that lacks.
He is so sad.
It is not hunger that pets.
He is so sad.
It is not fever that attacks.
He is so sad.
The soul is not the source.
He is so sad.
It is not time that passes.
He is so sad.
Something just was written.
He is so sad.
All thought is nothing. .
He is so sad.
He opens the drawers and
Finds what redeems him -
The hope is weathered.
He is so sad.
The truth is not enough.
He is very firm
In his verdict
And does not quit it:
He needs to give his heart
To the verse,
Here, now, promptly!
He even lives in me.

Adriano Nunes: "Algo a mais para ser conhecido"

"Algo a mais para ser conhecido"


Ele está triste.
Não é o amor que falha. 
Ele está triste. 
Não é a grana que falta. 
Ele está triste. 
Não é a fome que o afaga. 
Ele está triste. 
Não é a febre que o ataca. 
Ele está triste.
Não é a fonte a alma.
Ele está triste.
Não é o tempo que passa.
Ele está triste.
De escrever algo acaba.
Ele está triste.
Todo o pensar é nada.
Ele está triste.
Abre as gavetas, acha
O que o redime,
A esperança já gasta.
Ele está triste.
A verdade não basta.
Ele está firme
Em sua decisão
E não desiste:
Precisa ao verso dar
Seu coração,
Aqui, agora, já!
Ele em mim até vive.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "A capite ad calcem"

"A capite ad calcem"



Antes da Poesia não havia 
Deuses. Os poetas deram poderes
Imensos àqueles. Foram capazes
De entregar-lhes a própria criação,
O paraíso, o que pode o pensar.
Hoje há homens, deuses e saídas
De emergência. E maliciosos mistérios.
Há um caminhar de homens, observem,
Que se repete. Em êxtase de haver.
Em curto tempo, chegara o primeiro
Homem. Queria saber onde estava
A saída de emergência. O que era
O paraíso era insuportável.
Pôs-se a abrir a porta e atirou-se ao báratro
Dos desejos tão seus. Deus era um bárbaro.
Não demorara um minuto, o segundo
Homem surgira. A saída sabia
De cor. Lançou-se sobre ela e só
Queria libertar-se de si. Era
Inútil. Cortara os pulsos e dera
O último suspiro. O paraíso
Era um vício. Deus era o vasto vácuo.
Vieram muitos. Quase todos. Homens
E mulheres. Indistintos. Famintos
Pela esperança de não mais ter que
Voltar ao paraíso. Antes o
Veneno inescusável da dor e
Dos medos. O tédio nada ofertava.
As trilhas pras saídas de emergência
Vingavam infinitas. Como tudo
Que existia, apenas em aparência.
Depois de alguns dias, cansado e trôpego,
Aparece um retardatário. Faz-se
Necessário agora dizer que as portas
Que dão pra o esquecimento são guardadas
Por uma Esfinge. Em vez de enigmas, essa
Busca desvendar o cerne de quem
Chega. Se o ser sabe à beça de si,
Ela o devora. Saber de si fora
Um preceito punitivo que Deus
Ordenara à fera pra que cumprisse a
Sentença. Saber de si implicava
Também dos outros. Era morte certa.
Então, com astúcia e técnica, a Esfinge
Pergunta: homem de onde vem?
Não sei. Responde o homem. E pra onde
Quer ir? Não sei. Como se chama?
Homem, porque assim me chamas agora.
Impaciente, a Esfinge olha para
O alto céu. Volta o olhar para o homem
E, sem questionamentos, devora-o.
E virão os outros retardatários.
E sempre vão existir as saídas
De emergência. E a Esfinge. Escolhas. E o êxtase.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Meu ser de tudo se solta"

"Meu ser de tudo se solta"


Noite, e há o rastro de
Saber-me, sem fim, em ode.
Chove. A pensar toda a lida,
Sinto que em mim incontida
A existência de si salta,
Qual a lua, agora, alta.

Noite... E que ainda se pode?
Beber-me? Talvez só de
Imaginar a saída
De emergência para a vida,
Meu ser de tudo se solta,
Qual o sim que já não volta.

Ó ver que o infinito em verso
Quer conceber, n'alma imerso!

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Às alturas do íntimo" - para Mauro Sta Cecília

"Às alturas do íntimo" - para Mauro Sta Cecília


Aqui, restam o medo e os fragmentos
Da muralha, crianças sujas e
As mulheres escravas feitas sem
Qualquer pena ou remorso. O fogo chega
Às alturas do íntimo e reveste
A vista de memória e cinza. Velas
Vaidosas vão-se em mar alto. Navegam
Rumo à Grécia. Recolhem, muito bêbados,
Os corpos e armamentos, alguns gregos
Que ainda a sorte tentam, entre as perdas
E as graças. Talvez seja mesmo Helena
Em desespero a ir, a fugir de
Menelau. O seu peito entregue ao tempo
De haver um outro tempo a Páris serve
De recanto e veneno. São já dez
Da noite. Até bem pouco toda a gente
Contemplava o cavalo gigantesco
De Odisseu. Ao deus Zeus imploro que
O olvido nos devore, e que a dor cesse,
Que o filho de Laerte não regresse
À Ítaca, que tormentas sofra e seja
Infeliz. Em ruína o entendimento
Não nos conforta. Presos do silêncio,
Não mais quem somos nós conheceremos.
Que o olvido nos desvende, e o amor nos cegue.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Beati possidentis"

"Beati possidentis"



Perdeu a fortuna;
Perdeu a mulher;
Perdeu as crianças;
Perdeu os amigos;
Perdeu o que tinha.
No leito de morte,
Escuta a enfermeira
Recitar as Odes
De Horácio, um pedido
Seu. Era a primeira
Vez em que se via
Liberto do vácuo
Do olvido. E ouvia,
Com grã alegria,
Cada verso, cada
Precisa palavra.
Sabe o quanto quer.
E, por um segundo,
Pensou que jamais
Morreria, até
Lembrou-se de Jó,
Naquela pior
Situação. Fundo
Respirou. Sentiu
O abraço de Baco,
A lira de Erato,
A flauta de Euterpe,
Toda a vita brevis,
E sorriu. Depois,
Os vales floridos,
Favônio a fazer
Os alvos cabelos
Brincarem no ar.
É que era certo
Haver o mistério
De haver o mistério
De nada poder
No tempo voltar.
Perdeu os propósitos;
Perdeu o seu cão;
Perdeu seus negócios;
Perdeu seus imigos.
E o que bem lhe tinha.
No leito de morte,
Que mais temeria?
E, imerso em prazer,
Deu-se à poesia,
O seu magno norte.
E viu-se, assim, jovem.





segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Pelas Musas dada" - Para Alberto Lins Caldas

"Pelas Musas dada" - Para Alberto Lins Caldas


Píndaro relata
Que Zeus encantado
Co' a sua invenção -
Mundo e humanidade,
Todos deuses chama
Para contemplá-la.
Ouvem-se risadas
E, logo, palavras
De reprovação.
Afrodite brada
Não existir nada,
Ali, que criado
Ponha-se a adorá-lo,
Porque bem se sabe
Que o homem, seu mal,
Tudo esquece. Mal
Ouve tais vocábulos,
Zeus, amor e mágoa,
Já condena a humana
Espécie às amarras
Da existência, da
Vita brevis, mas
Oferta-lhe a arte
Pelas Musas dada,
Para que lembrada
Fosse a magna graça
Da vã criação.

domingo, 17 de agosto de 2014

Adriano Nunes/Gil Jorge: "De repente"

O meu poema concreto "De repente" (feito para o amado amigo Augusto de Campos) em uma bela versão concreto-visual feita pelo poeta e amigo Gil Jorge:





Adriano Nunes: "O amor é só matemática"

"O amor é só matemática"



E tudo está mesmo claro...
Dia que não mais se adia,
A espionar a alegria
Que chegara e que declaro

Agora, sob estas quadras
Com redondilhas. Pressinto
Livre estar do labirinto
Imo que me amalgamava

No que ser só eu podia.
Dou-me às palavras intacto
E com elas faço um pacto,
Afundo-me em fantasias

E abraço as paixões pautadas,
As que almejei e não tive,
As que inventei, inclusive:
Erros, estragos, estradas.

Ó, musa múltipla e mágica!
Ó, minério de sentidos
E lirismo em mim contido!
O amor é só matemática.

Hazel Hall: "Hours"

"Horas" (tradução de Adriano Nunes)


Conheci horas feitas qual cidades,
Casa a casa cinza, com ruas entre
Que a alteradas rotas levam e esvaem-se, 
Olvidadas em um campo virente;

Horas feitas qual montes que sublevam
Cristas alvas além da névoa e chuva,
E tecidas de proibida música -
Em seu sofrimento horas eternas.

Tapeçaria de horas, a vida
A suavizar no tom para sempre,
Onde tudo se mescla, até a saudade
Das horas por meu ser desconhecidas.


Hazel Hall: "Hours"

I have known hours built like cities,
House on grey house, with streets between
That lead to straggling roads and trail off,
Forgotten in a field of green;

Hours made like mountains lifting
White crests out of the fog and rain,
And woven of forbidden music—
Hours eternal in their pain.

Life is a tapestry of hours
Forever mellowing in tone,
Where all things blend, even the longing
For hours I have never known.



HALL, Hazel. The Collected Poems of Hazel Hall. Edited by John Witte. Corvallis: Oregon State University Press, 2000.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "O corpo de Lorca"

"O corpo de Lorca" 



Entre Vísnar e Alfacar
Ou num distinto lugar
Deve encontrar-se o teu corpo,
Ó, poeta. Aquele agosto
Repleto de agouros era
O que a ardilosa megera
Queria pra arrebatar-te, 
Pois, ela, por tua arte
Estava muito encantada,
Desde o primordial ano
Do Romancero gitano.
Ela: sempre astuciosa,
Nada prega, pesa ou dosa.
Ela: politicamente
Perversa, faz-se presente.
A filha do inesperado,
Átropos, tem a seu lado
Sempre uma carta na manga.
Na verdade, guarda tantas
Quanto necessário for.
Deleita-se com a dor
Alheia. E assim corta o fio
Da esperança, com ardil,
Do que passou a existir.
E não está nem aí.
Entre Vísnar e Alfacar
Ou num distinto lugar
Deve encontrar-se o teu corpo,
Poeta. Qual os de outros
Fuzilados. E em teus versos
Encontro-me mesmo imerso.
Chego a ter medo e arrepios.
"Frío, frío, como el agua
Del río."O corpo é nada.





domingo, 10 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "Átimos" - para Carmen Silvia Presotto

"Átimos" - para Carmen Silvia Presotto


Para espantar os pássaros, os braços
Abre o espantalho. O vento forte bate
Em suas velhas palhas. Outra esvai-se.
Porém eis que se atreve um corvo a dar
Seu ar de graça sobre a mão de pano
E tralha. Cisca, bica, e já não há
Mão, mas um grácil ninho. Ora, para
Que sirvo se nem mesmo um corvo espanto? 
Pensa o espatifado espantalho. Nada
Parece contentá-lo. Os muitos grãos
Da fazenda furtados pelos pássaros
Permanecem. O sol cega seu olhar
Despido de farrapos. Nem um traço
De medo impõe às aves. Que dor vasta
Atinge-lhe os recheios! Bem será
Que o fazendeiro irá fora atirá-lo
Feito um trapo. Nem corvos nem as gralhas
Dão por isso. Disputam todo o milho,
Rasgam as vestes gastas, e até dançam!
Vez ou outra defecam sobre a face
Do estático artefato. Antes não
Era assim. Com a palha a brilhar tanto,
Nenhuma praga aérea ser capaz
Era de atormentar o seu pensar.
Resta um contentamento: a floração
Da primavera, a ágil esperança
De que do inesperado ninho nasça
Um outro sol, a arte de haver átimos.




Adriano Nunes: "No íntimo do que há"

"No íntimo do que há" 



À vidraça a chuva se agarra.
Com o frio, esvai-se o olhar
Além da paisagem. Nada
De nítido quer restar.

Trôpega, para, à socapa, 
Uma andorinha. Solar
Alegria se amalgama
No íntimo do que há.

Faz-se quântica emoção
Em minha retina. A mágica
Palavra me sonda e arde:
É verão uma só ave!

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Adriano Nunes: "De densa saudade"

"De densa saudade"



Com angústia, aguardo
O instante preclaro
Para declarar
A ti, solidão, 
A veraz vontade
De em um lar estar.

Talvez porque já
Ingressei no átimo
Do amor lancinante,
Ou, quem mesmo sabe,
Em uma sinapse
De luz, pra enfeitar-me

Do que foge ao alcance.
É tudo um quiasma
De medos e mágoas.
Penélope faz
E desfaz a manta
Nupcial, errática.

Que dela bem saibam
As minhas pancadas
Popconcretas, mas
Escondam-lhe as lágrimas
Que agora desabam.
Entrego-me ao vácuo

Da vingança e lanço-me
À Ítaca. Abraço
O silêncio prático
De saber-me mais
Em mim. Risco e tática.
Não vês, solidão,

Que apertas bastante
O meu coração?
Tento, -Será tarde? -,
À língua entregar
O incomunicável.
E dá-se o espetáculo

De sentença e sangue.
Um mar se amalgama
Nos corpos tombados.
O tédio virá! -
Assalta-me o lapso
De densa saudade:

As Sereias, as
Praias escaldantes,
Os muros em chamas
De Troia, as vãs mágicas,
Os braços e lábios
De Circe. A ilusão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Emilio Prados: "Aparente quietud..."

"Aparente quietude..." (tradução de Adriano Nunes)


Aparente quietude ante teus olhos,
aqui, a ferida - sem alheios limites -,
É o fiel do teu equilíbrio estável. 
A ferida é tua, o corpo em que está aberta
é teu, teso e lívido até. Vem, toca,
baixa, mais perto. Não vês tua origem
entrando por teus olhos a esta parte
contrária da vida? Que tens achado?
O que não seja teu em permanência?
Atira a tua adaga e teus sentidos.
Dentro de ti engendra o que tens dado,
fora teu e sempre é ação contínua.
Tal ferida é testemunha: sem mortos.


Emilio Prados: "Aparente quietud..."


Aparente quietud ante tus ojos,
aquí, esta herida - no hay ajenos límites -,
hoy es el fiel de tu equilibrio estable.
La herida es tuya, el cuerpo en que está abierta
es tuyo, aun yerto y lívido. Ven, toca,
baja, más cerca. ¿Acaso ves tu origen
entrando por tus ojos a esta parte
contraria de la vida? ¿Qué has hallado?
¿Algo que no sea tuyo en permanencia?
Tira tu daga. Tira tus sentidos.
Dentro de ti te engendra lo que has dado,
fue tuyo y siempre es acción continua.
Esta herida es testigo: nadie ha muerto.


PRADOS, Emilio. "Signos del ser". In:___. Antología Cátedra de Poesía de las Letras Hispánicas. Selección e introducción de José Francisco Ruiz Casanova. Madrid: Ediciones Cátedra, 2005, p. 721.

sábado, 2 de agosto de 2014

Emma Lazarus: "Life and Art"

"Vida e Arte" (Tradução de Adriano Nunes)




Não enquanto o fulgor do sangue seja intenso,
Pulsa alto o peito, o olhar oculto, não menos
Com paixão do que com pranto, a Musa ungirá
O vate pra amparar e acalmar co’ o cantar.
Logo não pede que expressem aos lábios tímidos
Dolorosa alegria, o pesar libertino.
A vida é seu poema; carne, gênio, e senso,
Lira cheia de cordas concorde ao contento.
Mas quando o sonho é concluso, falham os pulsos,
A ilusão do dia, co’o cair do crepúsculo,
Ele, sozinho, na penumbra, observa o pálido
Consolador Divino, vertido em Desgosto,
Adentra e apertar-lhe a mão, e beija-lhe o rosto.
Como agora os meus - abrem-se a cantar seus lábios.



Emma Lazarus: "Life and Art"


Life and Art


Not while the fever of the blood is strong,
The heart throbs loud, the eyes are veiled, no less
With passion than with tears, the Muse shall bless
The poet-sould to help and soothe with song.
Not then she bids his trembling lips express
The aching gladness, the voluptuous pain.
Life is his poem then; flesh, sense, and brain
One full-stringed lyre attuned to happiness.
But when the dream is done, the pulses fail,
The day's illusion, with the day's sun set,
He, lonely in the twilight, sees the pale
Divine Consoler, featured like Regret,
Enter and clasp his hand and kiss his brow.
Then his lips ope to sing--as mine do now.






LAZARUS, Emma. Selected Poems. Edited by John Hollander. New York: Library of America,  2005.