sábado, 31 de julho de 2010

ADRIANO NUNES: "Manguelândia" - Para Lêdo Ivo.

"Manguelândia" - Para Lêdo Ivo.




Aqui não se vê vergonha.
A tez do povo é robalo,
Caranguejo, lodo, lama.
O sonho? Como sonhá-lo
Entre a terra decomposta
E o mar? Nunca só suponha
O tamanho da alegria

Das crianças a brincar
Com inverterbrados cães,
Brinquedos sujos de barro,
Cipós, garrafas de plástico,
Camaleão na cabeça,
Atração para os turistas.
Aqui vive a dor quem ama

O peixe fritado em posta,
As picadas dos mosquitos,
Moscas, mormaço, maré,
Camarão, chama-maré,
Lagosta, mexilhão, craca.
A vida vinga é o que é:

Caranguejo aratu, uçá,
Guaiamum... Tudo atolado
No arcabouço das raízes
Aéreas... Graça das garças
A ver o porvir ruir
Rente à predatória luz
Da esperança. O litoral

Biodiverso abriga o tempo
Da promessa, do progresso.
Aqui toda praça pública
É canoé. Luz elétrica
É o farol... De vez em quando,
Deuses aparecem cá,
Além das mãos calejadas,

Feito martins-pescadores.
Os moradores não choram
Pelo leite derramado,
Não cantam a vã vitória
Das sangrentas e sagradas
Guerras diárias. Seus prantos
São tais lágrimas crustáceas.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

ADRIANO NUNES: "Transa"

"Transa" 


por dentro
do tempo
do tela
da tara
da tarde
do todo
do tópico
da tinta
da trilha
do truque
do tudo

por fora
da tédio
da treta
do troço
do trote
da trama
da tática
do trunfo
do turno
da tribo
da tríade

as mãos
os pés
as línguas
os olhos
as frestas
os êmbolos
as somas
os ânimos
as fomes
os líquidos
as ítacas

terça-feira, 27 de julho de 2010

ADRIANO NUNES: "No céu azul desta tarde"

‎"No céu azul desta tarde"



Eu faço questão do céu
Azul nesta tarde turva.
Eu faço questão do Sol
Brilhando no azul do céu.
Eu faço questão da tarde
Ardente em minha visão.
Esta tarde tudo invade:

A vida, o verso, a viagem...
A folha em branco... que espanto!
Assim tudo vingará.
Assim tudo dará voltas.
Assim tudo será mais.
Meu coração sabe bem
Como afrontar alvoradas!





segunda-feira, 26 de julho de 2010

Adriano Nunes: "Tarde sem sonhos" - Para a minha mãe

"Tarde sem sonhos" - Para a minha mãe


Sem sonhos eu só te observa
Sem sonhos eu não tem pressa
Sem sonhos eu não sai dessa
Sem sonhos eu se reserva

Sem sonhos eu quer bem mais
Sem sonhos eu pouco faz
Sem sonhos eu não tem paz
Sem sonhos eu jaz em ais

Sem sonhos eu logo cega
Sem sonhos eu se esfacela
Sem sonhos eu tem cautela
Sem sonhos eu não se entrega

Sem sonhos eu incapaz
Sem sonhos eu já se vai
Sem sonhos eu se contrai
Sem sonhos eu se desfaz.






domingo, 25 de julho de 2010

Adriano Nunes: "pelo canto do olho"

"Pelo canto do olho"


o vazio dele
o vazio dela
o vazio do tempo
a pele
a pílula
o plano
a dois
o pranto
o plástico encanto
o trauma
a trama
depois

o vagão partindo
a ilusão chegando
o vazio da alma
o vazio do poço
o fundo
do outro
a máscara
o medo
de máscaras
a solidão

a folha caindo
a força agindo
à força
contra o tédio
o vazio
entre vazios
o verso
o silêncio
o amor
o nexo
a ver navios...


como ir mais longe?




sexta-feira, 23 de julho de 2010

Adriano Nunes: "À janela"

"À janela"


Quadrilátero
Transparente
Quase rente
Ao ver. O

Vivo objeto
Fixo, enfeite
De vãos, leite
Do arquiteto.

Pela vítrea
Fresta, a lua
Vista nua. A

Livre área
Do lar... E, à
Frente, a rua.




segunda-feira, 19 de julho de 2010

Adriano Nunes: "O coração"

"O coração"

Metáfora de carne,
Sem osso, denso plexo
De sinapses complexo,
Estrutura do cerne.
Vidas? Como esculpi-las
Com lacradas pupilas?
Com lágrimas e tédio,
Forma e fim, fome e fábula,
Pelo escape da escápula,
No mediastino médio?





quarta-feira, 14 de julho de 2010

Adriano Nunes: "Amplidão"

"Amplidão"

Entre o caos
E o meu cérebro,
O mistério:
Vida e verso.






sexta-feira, 9 de julho de 2010

ADRIANO NUNES: "Moreno" - Para Moacir Moreno

"Moreno" - Para Moacir Moreno


Um olhar. Esse é o teu.
O que olhar se através
Dele vês quem sou eu?
A viagem é longa.
A transa é outra transa.
O apartamento não
É o palco do teatro,
É o palco desse crime
Bárbaro. De fato, o tempo
É real. O amor gay
Virou tragédia gay.
Todos entendem bem:
Brutos nunca amam quem
Quer que seja. Último ato
Baiano - Assassinato
Frio! Um corpo nu, plástico,
Dois machos, dois paus, faca
E sangue, gritos, dor, nada.
Ninguém ouviu. Ninguém
Viu nada. Salvador
É jóia: Eis a mortalha
Encerrando outro drama.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

ADRIANO NUNES: "Cassandra" - Para Roberto Bozetti

"Cassandra" - Para Roberto Bozzetti



Vejo agora Troia ardendo
Em chamas. O coração
Da cidade chora. Não
É sonho. Que medo horrendo!

Acredita, é só verdade
O que te digo. O destino
Nunca dá trégua, é traquino:
Uma dádiva covarde,

Após abertas as portas
Da Pátria, trará tristeza
Sem fim. A delicadeza

Da Grécia é pura esperteza.
As pessoas serão mortas!
Ai, por que pouco te importas?



quarta-feira, 7 de julho de 2010

Adriano Nunes: "Proveta provisória II"

"Proveta provisória II"


A vida, gota
A gota, agora
Vinga. Lá fora,
Placenta rota,

Fluidos escorren-
Do. Nada além
Do tempo vem
À tona. Envolven-

Do, além, de tudo,
Toda a alegria,
Que restaria...

Útero mudo,
Mundo desnudo,
Dia após dia.


sexta-feira, 2 de julho de 2010

Adriano Nunes: "Às cegas, se for o caso"

"Às cegas, se for o caso"

Prometo-te a minha vida
Sem graça, tudo que sou.
Meus sonhos, às pressas, ou
Esta redondilha obtida

Às cegas, se for o caso.
Prometo-te essa alegria
Que há muito não me ocorria.
O verso agora extravaso,

Expulso-o do coração.
(Eis o meu ser encantado!)
Que imensa satisfação

Rever-te em mim abrigado,
Nota de alguma canção
Que fiz feliz, ao teu lado.


quinta-feira, 1 de julho de 2010

ADRIANO NUNES: "tarde"

"Tarde"



sol a pino
sal a ponto
de ser lágrima
de ser lástima
de escorrer
pelos lados
dos mil olhos
desta tarde.