quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Adriano Nunes: "Até a vírgula"

"Até a vírgula"


Está barato
Tudo de fato
A vida tida
A vida dada
A vida ainda

Tudo com preço
De promoção
O corpo mísero
O corpo mítico
O corpo morto

A prazo à vista
E parcelado
Qualquer virtude
Qualquer vergonha
Qualquer verdade

Paga-se com
Dor dotes dom
Sem fila sem
Firma sem nem
Ser mesmo alguém

Vende-se tudo
Deuses espúrios
Deuses espertos
Deuses estúpidos
De brinde o mundo

Todo alfabeto
Palavra signo
Sentido som
Voz vez vício
Início e fim

O sonho enfim
A chance o charme
O cheiro o sangue
A pele e o osso
O trema e a crase

De oferta farta-se
Quem comprar pode
Do medo à morte
Do tédio à tara
Não sobra nada

De vez em quando
O preço sobe
Fulano é forte
Beltrano berra
Sicrano sofre

Ninguém se espanta
Nem se incomoda
Com os esquemas
Vis sub-reptícios
Reina o mercado

Sem qualquer ética
À venda filho
À venda pai
À venda espírito
Grátis a serpe

E o paraíso
Mas não só isso
À venda a ética
À venda o éden
À venda o hífen

Até a vírgula
O ponto e a reta
O que se pensa
O que se sente
O que bem há

Está barato
Tudo de fato
A vida nítida
A vida ávida
A vida válida

Bem aproveitem
O tempo clama
O tempo chama
Tudo com preço
De promoção

Inferno e céu
Sem nenhum juro
Sem correção
Tudo tudo
O sim e o não

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