quarta-feira, 2 de maio de 2018

Adriano Nunes: "Depois de cada angústia domesticada"

"Depois de cada angústia domesticada"



Sempre a mesma aflição noturna.
O silêncio de tudo a corroer vorazmente
As expectativas. Quase assombro!
Ah, quimeras quânticas! Onde está Baco?
Por que parece não haver mais reparos?
Tragam-me a cicuta!
Tragam-me os açoites!
Ah, arquétipos humanoides
Que a Providência engendrou monstruosamente
Para dar cabo às esperanças!
Não me contem das suas conquistas transatlânticas!
Não me remetam aos seus descasos cibernéticos!
Tragam-me a forca e o banquinho!
Tragam-me a guilhotina e o riso do carrasco!
Está a vida ciente de todas as suas firulas frívolas.
Está o tempo sabendo de cada vontade e medo.
Será que chegaremos ao êxtase em existir
Depois de cada gole de algaravia,
Depois de cada angústia domesticada?
Tragam-me o fel das horas dilacerantes!
Tragam-me os ferros em brasa!
Que me importa o canto das cotovias, em Shakespeare?
Que me importa o piar do corvos, em Poe?
Ah, não me falem em milagres!
O único milagre de que bebo é o de Walt Whitman!
Ah, estranhíssima madrugada!
Ah, abalos de tempo! Como saber-te, Ilusão,
Sem que dilaceres o meu coração faminto?
Tragam-me os banquetes helênicos!
Tragam-me as Bacantes e os Faunos!
Deixem-me não ser quem me sinto e peso!
Nunca busquei salvação em meus versos.
Tenho horror ao conformismo comportadinho
Das cocotes metafóricas e dos verbinhos inúteis!
Rasguem os meus horizontes!
Queimem os meus murmúrios e minhas modas!
Ah, madrugada dos que se exilam em si!
Ah, hora que passa sem dizer a que veio!

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