quinta-feira, 23 de março de 2017

Adriano Nunes: "Estrago" - Para Leticia Sabatella

"Estrago" - para Leticia Sabatella


Já não há o braço
Porque há muito fora amputado
Pelo sonho de ter fortes braços. 
Sempre fora necessário ter fortes braços.
Já não há mais a feliz face
Porque há tempos ser feliz é quase
Ter que se dar ao vácuo e aniquilar-se.
Sempre fora a regra dar a outra face.
Já não há pernas nem firmes passos
Porque outrora tudo fora tomado
Como esquecido, perdido, falso, falho.
Do proletário ao iletrado, só uns traços.
O oco do âmago triturado, misturado, compacto.
Já não restam olhos para as tantas lágrimas.
Já não se arquiteta uma boca para as palavras tantas.
Nem mesmo se sabe por onde anda
A esperança tão gasta e manca.
Estão todos conformados com o pasto.
Estão todos conformados com o salário
Do medo de não ter mais um salário.
Estão mesmo com as correntes e as bitolas acostumados.
Bater ponto sete em ponto. Eis a dádiva!
Identificar-se com as regras do jogo, claro!
Morrer outra vez na expectativa do não.
Morrer outra vez na submissão do não.
Viver à espreita escravizante do não.
Continuar a ser explorado pela ilusão.
A ilusão em cada pedaço de pão que não
Parece ser mais só um pedaço.
Porque já fora o estratégico estrago engendrado,
A vida sub-reptícia se faz.
Eles sempre o poder supremo terão.
Eles sempre criarão deuses e pecados.
Eles sempre regurgitarão nossas fábulas,
Fraquezas, falácias, feridas nefastas.
Ah, tempo de caos e covardia barata!
Ah, tempo de cães e carnívoras ameaças!
Ó, mecânica corrosiva dos gritos abafados!
Ah, ideais que não levaram a nada!
Ó, massa que parece amar ser massacrada!
Ó, miríade de cansadas sinapses,
Como dar agora em tudo um basta?

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