"Eu não sabia que era assim"
Lanço-me ao espelho.
Outro cara me encara,
Outro ser diz ser eu:
Gestos,
Gostos,
Gritos,
Gozos,
Frente a frente as faces
Confundem-se,
Espalham-se: ilhas
De sonhos soçobrados,
Repetidos lances
De acasos,
Recheios de receios,
Casca e quase mais
Nada.
Quantas efígies
Existem
Em mim que desconheço?
Uma? A que convivo
Sempre sem um apreço?
Duas, tais cara e coroa?
Ou outros Caeiro, Ricardo e Álvaro
Vivos em minha pessoa?
Quantos eus e outros eus e
Máscaras
Mesclam-se ao que sou?
As afeições fictícias
Quem em mim as fixou?
Dr. Lao e as suas sete faces?
As sessões de psicanálise?
Iago, Otelo, Hamlet, Falstaff?
O medo inicial de ser médico?
O temor estético
De que a vida se completa
Quando vingo poeta?
Ou as vagas lembranças
De quando eu era criança
E amava andar de bicicleta?
Os amores que não tive e
Tive em memória, ilusórias
Imagens - mágica vontade
De ser amado -
De mim para tudo que me sinto?
Quantos espectros
Ainda resistem recalcados,
Ante o vazio do quarto, e pesam
Ser o ser que me cabe?
Quantos estão dispostos
A vir à tona?
Quantos querem
Surgir sem trauma?
Quando terão coragem de
Ser quem me abrigo agora?
Quando virão sem medo
À mostra?
Lanço-me ao verso.
Desisto de ser qualquer
Tempo que de mim espero.
Tudo é o oposto do coração.
Sou urgentemente eu mesmo.
Ninguém me chamou pelo nome.
Ninguém contou até trinta,
Para ver se eu me escondia.
Ninguém me deu a chance
De rasgar de vez a fantasia.
Ninguém ousaria. Ninguém
A sangrar
Sobre as sombras
Da minha íntima rebeldia.
Ninguém me acenou na despedida.
Eu não sabia que era assim.
Um comentário:
todas as efígies se revelam à poesia, quando feita de peito aberto e verbo ao vento. e é isso que dá o prazer de escrever ao poeta: seu autorrevelar-se...
belo poema!
abraço!
Postar um comentário