terça-feira, 2 de novembro de 2010

Adriano Nunes: "Os mortos"

"Os mortos"



Os mortos... Abrem-se
As portas e
Tudo pronto:
O momento
Sináptico, o tudo-nada
Do tempo, o jogo
De silêncios empoeirados
Da memória.

Somente os fantasmas
Fazem ruídos
Agora. Vestem-se
De fantasias cotidianas,
As esperanças,
Os sonhos.
Aquele lenço azul,
Aquela carta esquecida,
Aquela tarde
(Era primavera... Não sei.)
No campo, com os primos,
Aquele retrato
Sem cor, com vida,
Com fungos.

Recordação estéril...
Não.
Tudo é gozo-fátuo,
Migalhas
Do passado...
Sombras.

O cérebro quer,
O cérebro
Insiste em verter
Em saudade
Esse olhar gratuito
Para dentro,
Para mais além
Do ãmago...
Vértebras,
Vestígios,
Refletores,
Intervalos,
Interstícios...

Nos bastidores, o porvir
Aplaude,
À socapa,
A farsa do coração.
Mas não não há
Coisa alguma.
Não há livros
Nas estantes. Nenhum grito
Desesperado, nenhum
Primo ou tio,
Nem mesmo
O mofo

Das horas inertes
Gravadas
No arcabouço mesquinho
Da lembrança.
Os mortos... Quem somos?
Quantos fomos
Ontem
Ao meio-dia, depois
Do descanso,
Depois da alvorada?
O nascer

De vultos
Revolta-me. Que tristeza
Atreve-se a penetrar
Em meus olhos,
Arrancando-me
Medos,
Lágrimas,
Solidão?
Que nome dar

À voz
Do impossível?
Que nome
Vem à mente
Feito mistério,
Miríade de traços
Tão familiares?
O morto

Sou eu,
Entre tantos
Cadáveres conhecidos,
Personagens
Das tragédias,
Das telenovelas,
Do cinema,
Do meu quarto...
Gente que vivi,
Gente que enterrei,
Gente que matei,
Entre páginas.

A tinta
Sangra só
Lamento e tédio.
(Ninguém me avisou
Da visita súbita
De tais monstros)
O papel
Viverá? O rabisco
Voa rasante...
Sepulto-me,
Seco,
Solto,
Sub-reptício,
Argila,
Pedra,
Vácuo...
O nome?

As sete medidas
Subterrâneas,
Os ossos escondidos
Por cães de caça,
As carnes reviradas
Por vira-latas
Incolores,
Raquíticos...
O mundo emerso.

Sim, o nome.
O olvido presente.
O olvido preservado.
O olvido vivo
Vinga,
Vence.
Sim, o vento...
Os restos,
Os riscos,
As ruínas,
Os vermes.








Nenhum comentário: