Crítica musical: "Maré" – Adriana Calcanhotto
por Adriano Nunes
que faz um artista retomar um tema e conduzi-lo à máxima
experiência, a retoques implacáveis e sutis, a uma peneira, um filtro?
maturidade. sim, amadurecimento – mar de cimento – firme mar de ondas criativas
que vão-e-vêm cada vez melhores, cada vez mais querendo roçar a tez da areia –
a praia nua da boa música. e a praia de adriana calcanhotto é a sua música.
ao encerrar o cd “a fábrica do poema” com a décima quinta
canção intitulada “minha música”, a cantora e compositora adriana calcanhotto
diz em seus últimos versos: “minha música quer só ser música: minha música não
quer pouco.”
talvez, à época desse disco, calcanhotto não tivesse noção de
que a inspiração, o seu dom, a sua racionalidade, a sua sensibilidade, a sua
música trariam à tona uma maré cheia de pérolas, sereias, portos, segredos,
mulheres, saídas... para lá: três! sim, uma trilogia, não obrigatória, mas um
passo (ou uma braçada? ou um mergulho?) para alcançar o esplendor-reflexo do
seu canto marítimo.
“maré” é o novo cd de adriana calcanhotto. é uma sequência
tardia, pensada, cristalina e bela, do seu cd "maritmo". se neste é o
paragolé que impera, naquele é o azul em linhas desconexas, em areia azul
turquesa, mulher sem razão: sereia. assim é “maré”, álbum dedicado ao poeta
baiano waly salomão, amigo e companheiro de composições.
a música de abertura e que dá nome ao cd, composta por
adriana e moreno veloso, remete-nos à expectativa do que virá a ser esse mar
poético e deliciosamente musical que a autora pretende que nós, ouvintes,
críticos, fãs de música e poesia, naveguemos: “o mar se dá como imagem” ou
“será só linguagem”? são os violões de adriana e de moreno as ondas que ecoam
pelas batidas de domenico lancellotti. aqui o mar não é para tragédias ou
descasos; é para o azul do céu, para as esperanças, para as notas que emergem e
mergulham como golfinhos.
“seu pensamento” composta por dé palmeira e adriana
calcanhotto traduz o ceticismo da compositora para lugares além-mar, sólidos,
firmes – “pés na pedra”, “estacionamento”, “na terra”, “areia”, “apartamento"
– onde? – movidos poeticamente pelo “vento no cabelo” e pelas “voltas na
terra”. como não pensar nos cellos de moreno veloso e no piano elétrico de
kassim?
a música “três” dos marítimos irmãos marina lima e antonio
cicero antecipa o encantamento das sereias. seus compositores presentearam o cd
com uma canção bem dilacerante – nossa alma parece ser fisgada por uma das três
tentativas harmônicas de expressar o mar ali oculto: “o sol”, “naufragar” e
terminando “ao mar”. “três” é boa demais!
eis que começa “porto alegre", criada por péricles
cavalcanti para homenagear a cidade natal de adriana calcanhotto. alegre,
musicalmente envolvente, popular, sem preconceitos, mitológica: a estória de
ulisses, envolvida pelo ritmo calipso, ao partir da ilha de ea onde reside a
feiticeira circe, para cruzar com as sereias – “amarrado num mastro, tapando as
orelhas”. ficar atento aos poderosos cantos da encantadora sereia marisa monte.
as batidas leves e soltas do violão de adriana e o arranjo de
metais de rodrigo amarante transformam “mulher sem razão” no divisor de águas
melódicas do disco. feita por dé, bebel gilberto e cazuza (o poeta gravou esta
canção em seu disco burguesia – faixa 11), “mulher sem razão” é um liame que
faz de “maré” uma sequência-corpo de “maritmo”, já que neste há a belíssima
canção “mais feliz” do trio mais feliz e sem razão.
a partir daí, o disco projeta o lado intimista e poético –
diga-se de sua admiração pela poesia – da cantora: “teu nome mais secreto”
possui fragmentos do poema “madeiras do oriente” de waly salomão (de “pescados
vivos”, editora rocco, pg. 55) – são as “grutas ignotas” ou conchas do mar?
e o momento segue com “sem saída” de cid campos e augusto de
campos, “para lá” de adriana e arnaldo antunes – pura poesia: o mar ganha
dimensões incalculáveis; entretanto, deve ser explorado todo o seu infinito.
kassim e torquato neto nos brindam com a doce “um dia desses”
e “onde andarás” de caetano veloso e ferreira gullar é re-encontrada intacta
pela escafandrista adriana calcanhotto. o cd está prestes a acabar e a viagem
pelo “sargaço mar” de dorival caymmi só nos indica agora que direção tomar:
ouvir tudo novamente como se fosse a chance enigmática de encontrar a pérola,
ali, escondida na ostra acústica.
produzido por arto lindsay e adriana calcanhotto, “maré” é,
sem dúvida, o melhor lançamento do ano em música: marmorável!
3 comentários:
Maré é belo.
Muito lúcida sua crítica, mas texto em caps lock é muito complicado de ler. De qq jeito, parabéns! Lécio.
Caro Lécio,
Sei. É que à época, meu computador só escrevia assim e eu não poderia deixar de fazer um trabalho crítico só porque as regras tradicionais e de Internet acham que não é o certo ou o mais viável. Sou adepto da naturalidade da escrita e do concretismo, logo toda finalidade para mim é escrever, seja lá como for. Fico feliz por você ter gostado. Aliás, a minha amiga Adriana Calcanhotto (graças ao Antonio Cicero) publicou essa crítica em seu site, pois eu fui um dos primeiros críticos a afirmar a grandeza desse belíssimo CD que é MARÉ!
Grande abraço,
Adriano Nunes.
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