quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Adriano Nunes: "A linha" - para Nelson Ascher

"A linha" - para Nelson Ascher


Ynauktialev acordou mesmo tarde. A última caravana partira para Kalinkta antes das cinco. A neve seria uma ameaça para todos. Principalmente para os inimigos do reino. Digo inimigos do ponto de vista do reino: aquela visão única e exagerada sobre quaisquer situações. Sempre será bom para o reino ter um testa-de-ferro, um traidor ou um Zé Ninguém que respondam por algo. Pode-se dizer que é lei porque adveio de um costume bárbaro antigo. Em Satraievna, a vida se dava assim: aquele que questiona um ato estatal, seja qual for, precisa ser executado. Nas escolas, ensina-se, desde a prima aula, que o silêncio vale mais do que as esmeraldas, rubis e safiras da coroa do rei. Na verdade, as crianças não sabem se há alguma pedra na coroa do rei, porque perguntar qualquer coisa poderia ser questionar. Não sabem se há rei. Então aprendem a repetir a cantilena triste de que tudo em Satraievna é uma dádiva real. Não há deuses em Satraievna. Há um edito determinando ser veementemente proibido haver deuses porque um deus poderia questionar a autoridade do rei de alguma forma, mesmo os deuses fictícios e sub-reptícios. As crianças crescem órfãs das palavras e dos sentidos. Lembro-me da última vez que estive numa cidadezinha, na verdade um ducado, chamada Slavtech. Lugarejo sombrio que fica sob o controle do reino de Satraievna. Dirigia-me, é bom que se saiba, para Sophia, que fica quase cinquenta mil quilômetros desse ducado. Ao descer da carruagem, fui abordado por um certo tipo de guarda que me perguntou quem eu era e o que queria ali. Sem rodeios, disse-lhe que era um artista e que estava de passagem apenas. Pronto. A palavra artista soou como "gente subversiva e desobediente, plena de liberdades". Não deu tempo para um sorriso falso. Algemado, com um tampão feito de retalhos de panos velhos na boca, conduzido a um pequeno calabouço escuro e silencioso, fui.Três dias deixaram-me lá. Havia uma pia e água corrente. Numa mesa de mármore, seis pães. Um recado fixo à parede: beba a água, coma o pão, sirva-se do silêncio. Respeite o silêncio. Não conteste. O contestamento equivale a não mais poder ter contestamentos. Entendi a deixa e deixei-me, atordoado, reduzir às ordens de não sei quem. No terceiro dia, sem resquícios de uma migalha de pão qualquer, fui liberado. Sequer tive a ousadia de dar bom dia. Talvez, ali, tudo fosse proibido partindo de alguém que não fosse o alguém que ditasse o que era ordem prescritivamente só sua. Voltemos a Ynauktialev. E, agora, que fazer, pensou silenciosamente. Pensar de outro modo é pena perpétua! Precisava correr contra o relógio das armadilhas. Contra os ponteiros da astúcia. Contra os dígitos da arbitrariedade. Contra o seu ser já moldado. O frio era o Everest no ponto mais alto. Era o próprio Ártico. Luvas sobre luvas. Casacos sobre casacos. Livros. Alguns. Observou que alguma lei física já conduzia a carroça celeste, trazendo tímidos raios de sol. Respirou fundo. Viu-se qual uma raposa do Ártico. Partiu. Quando alcançou, exausto, os limites do reino, uma felicidade deslumbrante tomou conta do seu espírito. Seria um espírito, desta vez, livre, sentiu, em silêncio, claro. Ao voltar-se, um pouco, observou a cidade reluzente e toda a sua magnanimidade e beleza. Quis chorar. Lembrou-se de que ainda faltavam umas vinte passadas para alcançar a liberdade. Conteve-se. Andou dez passadas. A liberdade estava cada vez mais íntima e total. Mais quatro. Tudo era fulgor e palpitação. Mais cinco. Restava um único passo para Ynauktialev. Silenciosamente, perguntou-se: que fazer? Parou. Parecia ter ouvido algum barulho. Seu coração? Sua mente confusa e cansada? Esticou a coxa adiante, seguida da perna direita. Era um passo. A linha. A linha! Tudo era a linha. Era a felicidade num só passo. O passo decisivo. Aquele que é a liberdade com todos os seus matizes de alegria e cores. Ynauktialev agiu. O medo de ficar retido ao silêncio fez com que a sua laringe liberasse um grito, aqui, no momento, inenarrável. Um grito daqueles que damos quando algo dá certo. E deu. Ynauktialev acabava de libertar-se da própria escravidão. Ele deu um passo para que a opressão fosse questionada. A opressão do não questionamento e do silêncio.


Adriano Nunes

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