quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Adriano Nunes: "O dia em que Maria perdeu o juízo"

"O dia em que Maria perdeu o juízo"



Nenhuma paixão tem tanto poder a ponto de dominar uma alma e subjugá-la. Nem as etéreas. Nem as transcendentais. Assim pensava Maria enquanto tecia comedidamente o seu enxoval. O casamento está próximo. Não posso ficar perdendo tempo com sonhos infantis e ingênuos. Que falta ainda, meu Deus?

Se pudéssemos tocar e sentir todos esses tecidos, todas essas vestimentas, todos os adereços, compreenderíamos bem por que Maria estava há três dias sem sair de casa.

Sua máquina de costurar era de uma antiguidade herdada da sua avó, mas as idéias de Maria calhavam com a modernidade dos acontecimentos peremptórios do seu tempo e até mais além. Cada peça era cosida formidável e implacavelmente como se deusas gregas tivessem engendrado uma disputa contemporânea entre Maria e Aracne. Nada, nenhum detalhe passava despercebido por seus dedos e olhos. O seu vestido de noiva refletia a realeza de uma grande cerimônia, algo incomum para uma cidadezinha como Campos Floridos. Maria de tão cansada adormecera.

Noite boa é aquela em que a farra se perpetua além da madrugada. Os amigos de Zé sabem disso como se tivessem decorado a cartilha do ABC e aquelas regras gramaticais primárias de acentuação gráfica. Todas as proparoxítonas são acentuadas! E o riso invadia rostos e almas ululantes.

--Juca, traz mais uma!

--Beleza, Zé!

Véspera de casamento. Despedida de solteiro. Embriaguez assídua. Desejos e taras à tona. Conversas paralelas. Flertes alcoólicos e perigosas frases de efeito postas à mesa como um petisco cheio de libido. Passavam das onze... Desde cedo esse grupo de mancebos confraternizava-se.

Não só homens estavam ali. Algumas garotas se juntaram à reunião festiva e deliciosamente divertida. Amantes, paqueras, as noturnas, ex-namoradas, as que remoem dividendos e multiplicam rancores... E também os homem que, à socapa, ardem de desejo por outros homens. Secretamente e sem tino, a essa altura, todos se desvencilharam das regras. As brincadeiras deram lugar a jogos da verdade os quais evocam um erotismo comum em mesas de bares.

O sono de Maria era uma nebulosa, um vestígio de morte insípida e colorida. As pálpebras cerradas, cortinas opacas para o mundo dos sentidos e das perdas, tremiam e oscilavam entre as descobertas que só os espíritos conseguem quando estão nesse estado de torpor ilusório. Maria começara a sonhar.

Que angústia, nesse instante, trucidava agressivamente o seu coração? Uma taquicardia súbita e regular fez com que o sangue alcançasse ao cérebro como as águas que despencam de uma cascata e chocam-se com as pedras e a areia embaixo. O cérebro de Maria encheu-se de sinapses confusas e divisoras de momentos. Pensou...

Ou melhor, sonhou que o seu casamento poria um fim em sua liberdade, que estaria para sempre numa redoma de vínculos morais, que acordaria às cinco da manhã diariamente e prepararia o café para o seu esposo, que cozinharia e que lavaria pratos e roupas sem poder descansar, que perderia as amigas, que as conversas femininas iriam ficar restritamente relacionadas às outras mulheres casadas e cansadas, muitas das quais arrependidas, outras atemporais e felizes. Que engordaria, que ficaria velha, que seria traída...

O sonho ia tomando forma e matizes próprios. Maria se viu na hora do "sim" em pleno altar, cercada de gente sorrindo e chorando e se projetou sorrindo e chorando e, mesmo dormindo, uma lágrima caiu fugindo dos olhos ou do destino que está por vir. O sono era um coma e o sonho, um túmulo.

A despedida de solteiro rompera a manhãzinha. Se orgias ocorreram, não sei dizer. Dormi o sono de Maria e pus-me a ficar em sua mente. Zé era alegria e medo... O álcool forte das intempestivas ações carnais dominara o seu corpo e seus impulsos eram tigres famintos. Jorraram gozos e uma sujeira de pernas, braços, órgãos, mãos, bocas e olhos se arquitetaram num espetáculo de decisiva hora: o casamento se aproxima!

Bêbado, barba mal feita, hálito cetônico, olhos avermelhados e uma cefaléia pulsátil fizeram com que Zé se apressasse lentamente do seu próximo mundo, da sua embriagada nova vida, de cama de casal, de comidinha pronta, de alianças trocadas... Do Seu Zé da Dona Maria!

O susto de ter que levar uma vida quase vazia despertou Maria. Sem saber que escolha fazer, ela olhou para o relógio e percebeu que só faltavam duas horas para o seu casamento. Quis correr contra o tempo. Não, quis parar os ponteiros. Desesperava-se com seus medos e dúvidas. Imaginou rasgar o vestido e o véu e queimar o buquê.

Sentou-se na cama. Um sorriso, nunca antes visto, acrescentou à sua face delicada um aspecto irônico e sem motivação. Quis voltar no tempo e lembrou-se dos namorados que teve. Zé era o melhor deles. Fora o escolhido. Esse era o momento de confirmar as dúvidas e deliciar-se com o prazer de tê-lo até que a morte os separasse. Maria vestida de noiva era uma dádiva de Hera.

A cerimônia foi relâmpago. Os convidados logo se dispersaram. Os sons agora são os gemidos e sussurros do sexo convulsivo de uma tarde ensolarada de núpcias. Maria gozou alucinadamente. Sabe que fez a escolha mais adequada. Seus mamilos eriçados, quase pétreos, recebem a língua e a saliva de Zé. Delira.

O ventilador não consegue esfriar o calor do vai-e-vem das objetividades corpóreas e fluidas. Maria perdera o juízo e a sua loucura fizera-lhe feliz e mulher.

Um comentário:

Zélia Guardiano disse...

Belíssimo conto, Adriano!
Penso que toda expectativa ante a proximidadede um casamento gera dúvida, reflexão...
Você soube trasmitir, perfeitamente, os sentimentos, as emoções.
Gostei demais!
Grande abraço!!!