"Poesia não é o sem-sentido"
Poesia não é o sem-sentido ou a ausência plena de quaisquer sentidos. Porque se assim fosse, não haveria a necessidade de haver ars poetica: bastava um emaranhado de palavras feito ao acaso, sem preocupação alguma sobre o que viria a ser. Saibamos: todo poeta que assim pensa a poesia pode certifica-se de que pode fazer alguma coisa emaranhadamente desconexa de um mínimo de inteligibilidade, mas não faz poema algum. E se, como astúcia, faz as suas insanidades com pretensões estéticas em verso, faz versos com pretensões estéticas, mas não faz poema. Harold Bloom costuma separar os versificadores (vasta maioria!) dos verdadeiros poetas. E assim deve ser feito porque não posso considerar um poema, objeto estético de amplidão inenarrável, como qualquer recurso de composição, mesmo que este seja em versos. Um recado pode ser escrito em versos e nem por isso será um poema. Os poemas pertencem à categoria de arte maior, aquela que esteticamente se relaciona com a beleza. Com isso, não quero dizer que para se fazer um poema tenha que obedecer a alguma regra predeterminada. Sendo assim, discordo da posição de João Cabral de Melo Neto (MELO NETO, 1998) quando adere ao pensamento de Paul Valéry:
"A rima é algo necessário. Valéry me convenceu de que, para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo. Para mim, a rima é uma necessidade que precisa se impor."
E concordo com o maior poeta da Língua Portuguesa, Fernando Pessoa (PESSOA, 1994, p. 276):
"As regras apertadas, longe de serem um sinal de força, são um sinal de fraqueza"
Há inúmeros poemas não rimados que são esteticamente mais belos que poemas rimados, basta citar o magnânimo poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa (PESSOA, 1944, p. 252), considerado por muitos críticos como um dos mais belos poemas da humanidade. Aqui um único verso (pensado, construído com arte, um alexandrino perfeito!) de Tabacaria que, de certo modo, trata da in-utilidade (a única utilidade do poema é ser poema, por isso, separo a palavra "in-utilidade") de um poema:
"Essência musical dos meus versos inúteis,"
Como o belo deve ser tomado por um juízo de gosto, um juízo estético, a priori, já deve estar evidente que não posso fazer um poema como um simples objeto utilitário, pois tal objeto estético deve ser tomado como destituído de conceitos e finalidades para que possa ser sentido universalmente. Universalmente sentido porque a palavra estética em sua origem grega quer dizer "sensação". Universalmente porque se espera que todos concordem com este juízo estético. Por isso Immanuel Kant afirma que a bela arte não pode vir exclusivamente da inspiração, mas do labor árduo e do uso de todas as faculdades intelectuais.
"Para dar essa forma ao produto da arte bela se requer unicamente gosto, e a este se atém o artista em sua obra depois de havê-lo exercitado e depurado mediante diversos exemplos da natureza ou da arte, e depois de vários ensaios, amiúde laboriosos, encontra a forma que o satisfaz; é por isso que esta não pode ser considerada como coisa de inspiração ou de livre exaltação das energias espirituais, mas antes constitui um trabalho lento, e até penoso, de retificação que, tornando adequada a forma ao pensamento, não redunde em detrimento da liberdade no jogo dessas faculdades."
Sim, foi Kant, um dos primeiros, senão o primeiro, a atentar para a elaboração de um poema, da necessidade do uso das faculdades intelectuais todas na construção de um belo poema. Então o que João Cabral de Melo Neto (MELO NETO, 1997) fez foi repetir uma lição kantiana quando dizia que um poema tem mais transpiração que inspiração ou aqui, nesta sentença de “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte”:
"O trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a regra, posterior ao sopro do instinto. Também não se exerce nunca num exercício formal, de atletismo intelectual. O trabalho de arte está, também, subordinado às necessidades de comunicação."
Fernando Pessoa (PESSOA, 1966, p. 121), em seus textos sobre estética diz que:
"As três qualidades fundamentais do artista são:
1) A originalidade,
2) a construtividade, e
3) o poder de sugestão."
Assim, na modernidade, para não cair no abismo do dito de Publius Terentius Afer "nullumst iam dictum quod non dictum sit prius.", sigo o pensamento de Johann Wolfgang von Goethe (GOETHE, p.153) sobre a questão da originalidade:
"The most original authors of modern times are so, not because they produce what is new, but only because they are able to say things the like of which seem never to have been said before."
Quanto à construtividade, as palavras do poeta e filósofo Antonio Cicero (CICERO, 2012, p. 49) são esclarecedoras:
""poesia" significa feitura ou produção, e o poema é o feito, o produto."
Aqui, acrescento que para que se enquadre o feito, o produto como poético, ele terá que atender aos requisitos estéticos supracitados, no começo do artigo. Ou se afastar, definitivamente, do que esteticamente denuncio como um pretenso poema ou um péssimo poema.
E o próprio Pessoa (PESSOA, 1966, p. 121) descreve com genialidade o conceito de "poder de sugestão":
"o conceito geral de “poder de sugestão”. Por esse termo desejo exprimir aquilo que no artista permite tornar inteiramente perspícua a sua intenção e a sua emoção. Importa muito — a distinção é de relevo capital — não confundir “poder de sugestão” com “compreensibilidade”, como importa não confundir perspicuidade com clareza. Sobre confusões destas assenta o erro que sempre houve, da parte das pessoas de escassa sensibilidade, na crítica aos poetas simbolistas e decadentes — todos aqueles que, no seu pleníssimo direito, foram perspícuos sem serem claros."
Para então ser claro: não basta escrever em versos, não basta tecer um emaranhado de versos ou palavras sem o mínimo de sentido estético, de inteligibilidade. Pode-se estar fazendo outra coisa, menos poemas.
CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 49.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Maxims and Reflections of Goethe. Translated by Bailey Saunders. London: The MacMillan Company, 1906, p. 153.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Tradução de Daniela Botelho B. Guedes. São Paulo: Ícone, 2009, p. 162
MELO NETO, João Cabral de. “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte”. In: João Cabral de Melo Neto: prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MELO NETO, João Cabral de. In: ATHAYDE, Félix de. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: FBN - UMC - Nova Fronteira, 1998.
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993), p. 252.
PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Presença, 1994, p. 276.
PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1966, p.121.