“Um equívoco popular e o fulgor
da Poesia” - Para Antonio Cicero
Quando, em sua Poética,
Aristóteles (ARISTÓTELES; 2008, p. 38-39) diz que:
“Com efeito, as pessoas,
juntando ao nome do metro a palavra poeta, chamam a uns poetas elegíacos e a
outros poetas épicos, não os designando poetas pela imitação, mas pela
semelhança do metro. E, se escrevem alguma obra em verso sobre Medicina ou
sobre Física, costumam designá-los igualmente por poetas. Ora nada há de comum
entre Homero e Empédocles a não ser o metro; por isso será justo chamar a um
poeta e a outro naturalista, em vez de poetas.”,
fica evidente que, desde tempos
remotos, nem toda pessoa que escreve versos é tomada como poeta. Logo, não é a
estrutura formal que vai ditar as regras para classificar um escritor como
poeta, porque se assim fosse, um engenheiro, um químico, um matemático que
expressassem os seus cálculos, suas teorias, seus postulados em versos, seriam
considerados poetas. Nessa possibilidade formal de redução, qualquer um seria
então poeta pelo simples ato de tecer qualquer texto escrito em versos. Como as
obras dos verdadeiros (entenda-se, aqui, a palavra “verdadeiro” no sentido do escritor
que tem em si a consciência de ser poeta e que é reconhecido por outros poetas
como poeta) eram, quase sempre, escritas ou recitadas em versos, com ritmo e
métricas marcados, perceptíveis, convencionou-se chamar de poeta todo aquele
escritor que faz versos para distinguir daquele outro que escreve prosa. O
estorvo está aí, pois, como atesta belissimamente Antonio Cicero em Poesia e
Filosofia (CICERO; 2012, p. 37):
"Escrever
versos não é necessariamente escrever poemas. Pensa-se comumente que a palavra
"poesia" é antônima de "prosa". Trata-se de um equívoco.
"Poesia" não tem antônimo em português. Se quisermos falar do oposto
à poesia ou ao poema, temos que usar algo como as expressões "não
poesia" e "não poema".
É
a palavra "verso" que é antônima de "prosa". Essa oposição
pode ser esclarecida etimologicamente. "Prosa", do vocábulo latino
"prorsus" e, em última
instância, de "provorsus"
que quer dizer "em frente", "em linha reta", é o discurso
que segue em frente, sem retornar. "Verso", do vocábulo latino "versus", particípio passado
substantivado de "vertere",
quer dizer "voltar", "retornar", é o discurso que
retorna."
Entretanto, se e somente se a
diferença vulgarmente tida entre poesia e prosa se estabelecesse pela diferença
entre verso e prosa, deixaria à poesia o perigo de ser tomado como poema todo e
qualquer escrito em verso. Seria então todo escrito em verso um poema legítimo?
Seria necessário que para ser um poema a construção deva ter a capacidade
intrínseca de “voltar”, retomar um percurso antes trilhado, retornar? E o que
dizer, destarte, dos textos em prosa
versificados? Que outro recurso estético, formal e/ou material, poderia ser utilizado
para evidenciar in totum as diferenças,
talvez definitivas, entre prosa e poesia, ou melhor, diferenciar a poesia de
qualquer escrito que não seja poesia? Há essa possibilidade estética?
Antecipadamente, respondo: sim!
Para tanto, inicialmente,
recorrerei a Samuel Taylor Coleridge que explicitou, como tantos, uma tentativa
de estabelecer a diferença entre poesia e prosa, em seu aspecto formal,
obviamente, pois, desde já, afirmo que materialmente/substancialmente não há
diferenças entre ambas, pois tanto a prosa quanto a poesia podem tomar para si
quaisquer assuntos, temas. Neste aspecto material, a diferença será de como o
material fático, verbal, os signos serão usados, trabalhados. Então o uso deste
material ainda assim é um critério formal. Vamos a Coleridge (COLERIDGE; 1917, p. 73): “I wish our clever young poets would remember
my homely definitions of prose and
poetry ; that is, prose = words in their
best order ; — poetry = the best words in
the best order.” Vejam que o poeta e crítico literário inglês dá
uma dica para os jovens poetas, uma dica “caseira”, ou melhor, pessoal, para
que eles percebam qual a diferença entre poesia e prosa. Aqui, não há dúvida de
que também se trata de uma diferença formal, pois ao igualar a poesia a
melhores palavras na melhor ordem, ele apenas expõe que para um texto ser
poético as melhores palavras e a melhor ordem devem ser escolhidas, mas não diz
como é essa ordem e nem quais palavras são as melhores, e, ainda que dissesse
que ordem seria essa e quais palavras seriam essas, não eliminaria definitivamente
o critério formal, porque teria que estabelecer um critério axiológico que
fizesse o poeta escolher sempre aquela mesma palavra em determinada situação, o
que seria embaraçoso e reduziria a amplidão estética que realmente possui a
grande poesia. Aqui, posso aplicar, analogicamente, a tese de Ronald Dworkin
(DWORKIN: 2011, p. 41-45) sobre o uso dos princípios no Direito, pois em caso
de haver uma escolha entre palavras na elaboração de um poema e que sabendo que
nenhuma palavra exclui em definitivo outra, mas apenas, momentaneamente, por
uma questão estética, como um princípio no Direito não exclui um outro em
definitivo, mas, sim, que pesa mais que outro em dados momentos, numa decisão
concreta, por exemplo, pois não se pretende estabelecer condições que tornem
obrigatória e necessária a sua aplicação. Concluindo: não há nenhuma palavra
melhor do que outra num vernáculo, ainda que haja critérios para estabelecer
que ordem seja pretensiosamente melhor. O quebra-cabeça se monta trocado, pois
em vez de oferecer uma forte diferença, leva-nos a ter que estabelecer um
critério formal praticamente impossível para esteticamente dizer que palavra é
melhor do que outra numa dada ordem, supostamente melhor. Como saber então, ao
menos, essa ordem? Seria ela determinada pelos elementos do ritmo e da métrica?
Se só fosse o elemento simples e puro de ritmo e métrica, acredito que não,
pois um texto em prosa pode ser ritmado e até mesmo metrificado. Elementos
rígidos e fixos de ritmo e métrica? Talvez.
É essa junção de metro, rima,
ritmo, palavras, ordem, formas, todo este conjunto estético que tende a
estabelecer uma certa diferença entre um texto poético e um texto em prosa. Atento
a isso, Allan Bloom citado por Harold Bloom (BLOOM; 2005, p. 52) diz que "a
poesia tende a mesclar os elementos naturais e convencionais das coisas; e
consegue encantar os homens de tal maneira que estes deixam de enxergar as
costuras que unem tais elementos." Apesar
de que possam vir com objeções, creio que posso dizer que a poesia é desde a
sua origem um rito estético, pois lembremo-nos da narrativa de Herôdotos sobre
o primeiro cantor de Ditirambos, Aríon, que antes de ser lançado ao mar, para
ser morto por ladrões, pediu para antes de morrer recitar seus versos, trajando
roupas típicas de aedos, ou seja, ele não cantou por cantar, mas teve que
ritualmente visualizar-se como aedo em seus trajes de rito em honra de Apolo.
(HERÔDOTOS, 1988, p. 25). Em homenagem a Aríon compus o poema* abaixo:
"Ôrthios nomos"
Aqui, de pé na popa, Apolo,
poupa-me
Da artimanha desses nefastos
homens,
Ouve o meu canto de dor e de
assombro,
O mar revolto amansa, porque
pronto
Para o salto estou. E como fui
tolo
Contratando, sem saber, esses
lobos
Famintos pelo ouro, o lucro
todo
Que tive ditirambos a tal povo
Ensinando! Poupa-me, Deus dos
Corvos,
Do líquido destino, sob meus
olhos,
Leva-me de volta a Corinto,
outro
Canto permite-me dar-te, em
louvor,
Pra que saibam de Aríon, o
cantor,
Que da morte foi salvo por
Apolo!
Se outrora o rito poético era
em honra de Apolo, hoje se pode dizer que é em honra do próprio poema. Não se
deveria usar termos como “escravo da poesia”, “escravo da arte”. A arte também
não deve ser vista como forma de libertação. No primeiro caso, não se deve
dizer “escravo da arte ou da poesia” porque a poesia está voltada para a esfera
do prazer. Mesmo os poetas, quando em suas tristezas máximas, sentem-se felizes
e agraciados quando contemplam o fruto do seu labor poético. Tanto é que até no
leito de morte muitos poetas escrevem versos. No segundo, porque ver arte como
forma de libertação é dar uma finalidade a ela, o que não é possível enquanto
arte, já que, por ser arte, é uma finalidade sem fim, conforme a estética
kantiana (KANT; 2009, p. 71):
“O prazer provocado por um objeto, pelo qual
qualificamos este de belo, não pode basear-se na representação de sua
utilidade, pois, caso contrário, não seria um prazer direto pelo objeto,
condição essencial de juízo sobre a beleza. Em contrapartida, uma finalidade
interna objetiva, quer dizer, a perfeição, se aproxima já muito do predicado da
beleza, e isso induziu alguns filósofos famosos a considerá-la idêntica à
beleza, embora com a nota restritiva de ser uma perfeição concebida
confusamente. Por conseguinte, numa crítica do gosto, e de suma importância
decidir se também a beleza pode dissolver-se no conceito de perfeição.”
Bem explicita o labor poético
Hannah Arendt (ARENDT; 2013, p. 74) quando afirma que "a tarefa do poeta e
historiador (postos por Aristóteles na mesma categoria, por ser o seu tema
comum práksis) consiste em fazer
alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis, ação e
fala, nesta espécie de poíesis ou
fabricação que por fim se torna a palavra escrita." A poesia é a
necessária linguagem para todos os corações e mentes que procuram pela infinita
amplidão estética de cada palavra. Destituída de utilidade, a arte poética
apenas acontece. É esse um instante de fulgor e de felicidade para o poeta
quando emerge do seu labor e percebe que dali há a possibilidade palpável de
brotar a beleza. Talvez seja por isso que a poesia não precise dar explicações
sobre a que veio. Bastando a si, ela é o seu próprio fim e o seu próprio meio.
E gera cosmos sem quaisquer receios de realidade. Seu horizonte é a prova
nítida de que ela de tudo, para só ser poesia, se vale. A poesia é o único meio
pelo qual uma palavra consegue realmente ser sentida, ser percebida, ter brilho
e amplidão enquanto palavra. A fala e a prosa não denotam a palavra enquanto
palavra: passam as palavras a ser um todo cujo resultado depende mais da ideia
e do que se quer expor do que de uma palavra em particular. Na poesia, isso não
acontece, pois uma palavra pode fazer gerar todo o universo e, por isso, ser
notada como o gérmen, como a força criadora desse instante mágico.
A “melhor ordem”, dita por
Coleridge, significa que há um requisito mínimo para que um texto seja um poema:
ela nos leva à percepção de que a poesia requer para si determinada harmonia,
certo arranjo estético em que cada palavra é evidenciada por si e brilha por si
e todas elas reunidas fazem com que o brilho individual de cada palavra aumente
mais. No texto em prosa, a palavra paga o caro preço de ser só mais uma
palavra. Consequentemente, não devo considerar como poesia quaisquer vestígios
em que na elaboração de versos não estejam presentes o fulgor e o impacto dos
artifícios intelectuais cujo efeito final é, máxime, uma estrutura formal
adequada esteticamente e tenha, no mínimo, leve organização inteligível. A bela poesia
necessariamente requer tais demandas estéticas que a arte proporciona. Logo,
como supracitado, é na poesia que uma única palavra passa a ter potência e luz
própria, que é visualizada em meio à miríade de palavras que compõem um
vernáculo. É na poesia que a palavra pode representar in totum a beleza.
Sempre inteligente e com
lucidez, Antonio Cicero (CICERO; 2012, p. 7) define o labor poético com elegante
ironia:
"A poesia é ciumenta e não aparece a menos que eu
lhe dedique todo o meu espírito, todos os meus recursos, todas as minhas
faculdades, sem garantia alguma de que, mesmo fazendo tudo o que ela exige, eu
consiga escrever um poema. Não me basta trabalhar para que nasça um
poema."
Por isso, em meu poema concreto “Ars poetica”, chamo a poesia de “poder
que tudo pode”. Descontruíndo um único verso “podetudoopoderquepodetudo” e contruindo
um outro verso dentro da própria desconstrução, evidencio que pode ser que
surja um poema, ou seja, “podeserquesejaumpoemanovo”, porque, os poetas sequer
sabem como findará o poema, a não ser que este lhes diga e oriente como a arte
precisa alcançar um fim sem fim esteticamente luminoso:
"Ars
poetica"
Podetudoopoderquepodetudo
Podetudoopoderquepodetudp
Podetudoopoderquepodetupo
Podetudoopoderquepodetpod
Podetudoopoderquepodepode
Podetudoopoderquepodpodes
Podetudoopoderquepopodese
Podetudoopoderqueppodeser
Podetudoopoderquepodeserq
Podetudoopoderqupodeserqu
Podetudoopoderqpodeserque
Podetudoopoderpodeserques
Podetudoopodepodeserquese
Podetudoopodpodeserquesej
Podetudoopopodeserqueseja
Podetudooppodeserquesejau
Podetudoopodeserquesejaum
Podetudopodeserquesejaump
Podetudpodeserquesejaumpo
Podetupodeserquesejaumpoe
Podetpodeserquesejaumpoem
Podepodeserquesejaumpoema
Podpodeserquesejaumpoeman
Popodeserquesejaumpoemano
Ppodeserquesejaumpoemanov
Podeserquesejaumpoemanovo
Adriano Nunes
Referências:
ARENDT,
Hannah. Entre o passado e o futuro.
Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013.
ARISTÓTELES.
Poética. Tradução do texto grego de
Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
BLOOM,
Harold. Onde encontrar a sabedoria?. Tradução de
José Roberto O'Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
COLERIDGE,
Samuel Taylor. Table Talk and Omniana of
Samuel Taylor Coleridge. With a note on Coleridge by Coventry Patmore. London: Oxford
University Press, 1917.
DWORKIN,
Ronald. Levando os direitos a sério.
Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
HERÔDOTOS.
História. Tradução do grego,
introdução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1988.
KANT,
Immanuel. Crítica da faculdade de julgar.
Tradução de Daniela Botelho B. Guedes. São Paulo: Ícone, 2O09.
NUNES,
Adriano. Quefaçocomoquenãofaço.
Blog de poesia do poeta e tradutor Adriano Nunes. URL: http://astripasdoverso.blogspot.com.br/
. Acesso em 02/08/2015. 16:00.