quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Adriano Nunes: "Desestruturando Lucrécia"

"DESESTRUTURANDO LUCRÉCIA"



A noite não fora lá essas coisas. Voltara arrependida e sentira que o seu coração, por um segundo, tinha parado e, subitamente, voltara a bater acelerado como se estivesse para parar de vez. Apressara o passo. Toda diversão exige comedimento e, em plena madrugada, deambular por aí sozinha é sempre bem arriscado. Lucrécia olhou para o seu relógio e percebeu algo estranho. Ainda eram onze horas da noite. A pilha acabara? Fazia tempo que ganhara de presente esse relógio e nunca pensou em trocar a pilha.

Esquecidas as horas, Lucrécia partira em busca de seu destino ou da sua loucura. Opa! Alguém se aproxima com uma rapidez violenta em direção da nossa lânguida fêmea solitária. Pelo andar robusto e pelo espectro que a imaginação cria nesses momentos, pela postura viril e decidida, vê-se logo que é um homem, um macho de corpanzil. Duplo som de pegadas no rumo de uma rua sem movimentos, de uma estreita rua comum onde bêbados, drogados e prostitutas congregam-se numa harmonia mórbida e desumana.

O alcance foi silencioso e o susto dera lugar a riso e... Ai! Rapaz! Desse jeito você termina por me ver em um caixão! O sorriso oposto poderia completar a frase e dizer algo que as paixões não conseguem mesmo com palavras decoradas ou versos de poesias, mas os hálitos tiveram força e química e um roçar de línguas e uma embriaguez de saliva calaram os amantes.

Zarig pusera-se a esbravejar, enfim, todo o seu rancor de quem não está mais satisfeito com algo. Sua vida estava virando pelo avesso e esses encontros noturnos eram miríades de discussões em sua casa. Homem casado. Três filhos. Esposa dedicada. Um lar abençoado e, quem sabe, feliz. E era. Lucrécia agora era a outra margem do rio. A face secreta dos impulsos primitivos. Sabia que não a amava. Queria terminar tudo e seguir a rotina de um bom pai e de Senhor de família. Decidira ali mesmo.

As explicações convincentes nas paixões diferem da realidade. Dizer que não mais ama, que prefere esquecer, que o amor está corroído e gasto, que não há outra pessoa, que quer dar um tempo são argumentos repetidos e todos os amantes já provaram de algum desses venenos do arrependimento e da culpa.

Pulsos cortados, vexames e escrachos, vulgaridades e intimidades expostas, lar abalado, perguntas sem respostas, dúvidas e medos, comprimidos ansiolíticos e antidepressivos... Nada foi capaz de refazer aquele sentimento que unira carnalmente Lucrécia e Zarig.

As ameaças cumpridas e as chantagens concretizadas só desvencilharam ainda Lucrécia do seu objeto de cobiça. O ódio nascera da rejeição não idealizada, do fim não esperado, da ruptura não programada... Ah! Quantos sonhos desfeitos! Quantas viagens adiadas! Quantas datas comemoradas sozinha e com uma esperança infinita recheando o seu miolo de sinapses afetivas!

Até os livros de romances e ficção tinham sido largados à beira do fatalismo e do tédio. Maços e maços de cigarros não resolviam o caos da solidão. Que fazer? Que mais sentir? Os homens agora eram monstros e, os seus dias, trevas e ruínas. Pensou em mudar de bairro, cidade, país. Quis arranjar outro amante, um namorado...

O ciúme não fora um bom remédio e dores espirituais cercaram todo o seu ser. Quase decididamente preparada para seguir pela estrada do nada. O nascer do sol, naquele dia, não trouxe luz nem perdão.

Zarig soube do ocorrido e sequer afastou-se de onde estava para pensar um pouco. A vida iria continuar sem lembranças e sem infortúnios. O velório, simples e cheio de lamentações, desfez-se. A terra engoliu mais uma massa de células sem vida que apodreceria em poucos dias e os vermes festejariam e dariam à luz os seus descendentes.




Adriano Nunes






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