quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Adriano Nunes: Crítica musical de "Maré" de Adriana Calcanhotto

Crítica musical: "Maré" – Adriana Calcanhotto
por Adriano Nunes
  



que faz um artista retomar um tema e conduzi-lo à máxima experiência, a retoques implacáveis e sutis, a uma peneira, um filtro? maturidade. sim, amadurecimento – mar de cimento – firme mar de ondas criativas que vão-e-vêm cada vez melhores, cada vez mais querendo roçar a tez da areia – a praia nua da boa música. e a praia de adriana calcanhotto é a sua música. 

ao encerrar o cd “a fábrica do poema” com a décima quinta canção intitulada “minha música”, a cantora e compositora adriana calcanhotto diz em seus últimos versos: “minha música quer só ser música: minha música não quer pouco.” 

talvez, à época desse disco, calcanhotto não tivesse noção de que a inspiração, o seu dom, a sua racionalidade, a sua sensibilidade, a sua música trariam à tona uma maré cheia de pérolas, sereias, portos, segredos, mulheres, saídas... para lá: três! sim, uma trilogia, não obrigatória, mas um passo (ou uma braçada? ou um mergulho?) para alcançar o esplendor-reflexo do seu canto marítimo. 

“maré” é o novo cd de adriana calcanhotto. é uma sequência tardia, pensada, cristalina e bela, do seu cd "maritmo". se neste é o paragolé que impera, naquele é o azul em linhas desconexas, em areia azul turquesa, mulher sem razão: sereia. assim é “maré”, álbum dedicado ao poeta baiano waly salomão, amigo e companheiro de composições. 

a música de abertura e que dá nome ao cd, composta por adriana e moreno veloso, remete-nos à expectativa do que virá a ser esse mar poético e deliciosamente musical que a autora pretende que nós, ouvintes, críticos, fãs de música e poesia, naveguemos: “o mar se dá como imagem” ou “será só linguagem”? são os violões de adriana e de moreno as ondas que ecoam pelas batidas de domenico lancellotti. aqui o mar não é para tragédias ou descasos; é para o azul do céu, para as esperanças, para as notas que emergem e mergulham como golfinhos. 

“seu pensamento” composta por dé palmeira e adriana calcanhotto traduz o ceticismo da compositora para lugares além-mar, sólidos, firmes – “pés na pedra”, “estacionamento”, “na terra”, “areia”, “apartamento" – onde? – movidos poeticamente pelo “vento no cabelo” e pelas “voltas na terra”. como não pensar nos cellos de moreno veloso e no piano elétrico de kassim? 

a música “três” dos marítimos irmãos marina lima e antonio cicero antecipa o encantamento das sereias. seus compositores presentearam o cd com uma canção bem dilacerante – nossa alma parece ser fisgada por uma das três tentativas harmônicas de expressar o mar ali oculto: “o sol”, “naufragar” e terminando “ao mar”. “três” é boa demais! 

eis que começa “porto alegre", criada por péricles cavalcanti para homenagear a cidade natal de adriana calcanhotto. alegre, musicalmente envolvente, popular, sem preconceitos, mitológica: a estória de ulisses, envolvida pelo ritmo calipso, ao partir da ilha de ea onde reside a feiticeira circe, para cruzar com as sereias – “amarrado num mastro, tapando as orelhas”. ficar atento aos poderosos cantos da encantadora sereia marisa monte. 

as batidas leves e soltas do violão de adriana e o arranjo de metais de rodrigo amarante transformam “mulher sem razão” no divisor de águas melódicas do disco. feita por dé, bebel gilberto e cazuza (o poeta gravou esta canção em seu disco burguesia – faixa 11), “mulher sem razão” é um liame que faz de “maré” uma sequência-corpo de “maritmo”, já que neste há a belíssima canção “mais feliz” do trio mais feliz e sem razão. 

a partir daí, o disco projeta o lado intimista e poético – diga-se de sua admiração pela poesia – da cantora: “teu nome mais secreto” possui fragmentos do poema “madeiras do oriente” de waly salomão (de “pescados vivos”, editora rocco, pg. 55) – são as “grutas ignotas” ou conchas do mar? 

e o momento segue com “sem saída” de cid campos e augusto de campos, “para lá” de adriana e arnaldo antunes – pura poesia: o mar ganha dimensões incalculáveis; entretanto, deve ser explorado todo o seu infinito. 

kassim e torquato neto nos brindam com a doce “um dia desses” e “onde andarás” de caetano veloso e ferreira gullar é re-encontrada intacta pela escafandrista adriana calcanhotto. o cd está prestes a acabar e a viagem pelo “sargaço mar” de dorival caymmi só nos indica agora que direção tomar: ouvir tudo novamente como se fosse a chance enigmática de encontrar a pérola, ali, escondida na ostra acústica. 


produzido por arto lindsay e adriana calcanhotto, “maré” é, sem dúvida, o melhor lançamento do ano em música: marmorável!

3 comentários:

Elisa Kozlowsky disse...

Maré é belo.

Leco disse...

Muito lúcida sua crítica, mas texto em caps lock é muito complicado de ler. De qq jeito, parabéns! Lécio.

ADRIANO NUNES disse...

Caro Lécio,


Sei. É que à época, meu computador só escrevia assim e eu não poderia deixar de fazer um trabalho crítico só porque as regras tradicionais e de Internet acham que não é o certo ou o mais viável. Sou adepto da naturalidade da escrita e do concretismo, logo toda finalidade para mim é escrever, seja lá como for. Fico feliz por você ter gostado. Aliás, a minha amiga Adriana Calcanhotto (graças ao Antonio Cicero) publicou essa crítica em seu site, pois eu fui um dos primeiros críticos a afirmar a grandeza desse belíssimo CD que é MARÉ!

Grande abraço,
Adriano Nunes.