sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Adriano Nunes: "Dez para dez" - Para Carmen Silvia Presotto

"Dez para Dez" - Para Carmen Silvia Presotto




Não há motivos óbvios para que Maria arrume as malas. Não há raiva ou ódio. Tudo é só uma questão peremptória de saber que a sua vida não pode ser mais aquela em que os dias são as insatisfações inacabadas, os desassossegos violentos do lar, os poemas nunca concebidos, as alegrias adiadas feitos eventos musicais cancelados na última hora. Nove e meia.

Se pudéssemos rever todos os seus atos, todas as suas falas, compreenderíamos o porquê das duas malas sobre a perigosa cama. Os sonhos tinham sido dilacerados pelos cupins da realidade. Os amores, se houve, foram a ficção noturna de que o amanhã virá e sempre virá e não mais. Ai, Maria está decidida! Todo o seu passado foi atirado aos leões do olvido. A bagagem aprisionada na memória desfez-se como o agora se desfaz diante do ônibus que ainda não chegou, mas que a levará, ao menos, para a estrada da consciência, para a vista da janela, para a paisagem que passa - cinema mudo, mesquinho, fugaz - ,para o choro irritante das crianças de colo, para o odor fétido dos vômitos e da cana-de-açúcar em chamas. Se pudéssemos, notaríamos a inexistência de esperanças.

Nove e trinta e dois. Outra hora não faria diferença noutro tempo. Outro rapaz solícito, tentando carregar o seu mundo de roupas, batons, perfumes e sapatos, não importa neste instante. Aquele lá sorri, flerta, quer mais que sorriso ou pálpebras abertas. Maria é quem se pensa. Sente. Que medo poderia alcançar o cerne de tudo que o destino lhe reservou? Acende um cigarro. Voltar atrás? Perdoar a traição? Não. Maria não foi traída. Maria tem graça, tem pernas, sabe fazer o sexo gostoso das prostitutas, sabe ser mulher entre quatro paredes e um ventilador com uma das hélices pela metade. Ela gostava de ser penetrada por trás. Ele nunca sentira isto. Ele era o álcool forte das ilusões insólitas do cotidiano, o rascunho tenso do disse-me-disse da vizinhança. E foi-se.

O ônibus acaba de repousar a sua maquinaria feia e necessária na estação. Maria olha para os lados. Nenhum sinal dele. Deuses, meus deuses! Lá vem o espectro viril, às pressas, correndo, correndo, correndo e aos gritos, a dizer que a ama! Tudo é breu. Nove e quarenta. Maria entrega a sua intimidade móvel ao cobrador e este guarda-a no subsolo metálico do século. Um degrau. Dois degraus. Três degraus... E o âmago do ônibus já a possui.

Observo-a, do terminal, fixa à janela. Deve estar meio triste. Não sei. Joguei fora o fascies da descrição mais justa. O leitor não pode vir a ser testemunha. Somos cúmplices. A gorda Francisca senta-se ao lado. Ninguém precisa saber quem é Francisca. Maria se incomoda um pouco. O motor acena movimento. Alguns garotos entram ofertando água, milho, cocada. Olha a água! É só um real, Senhora! Não há sinal de próximas paradas. O voo de Maria é íntimo. Ter esfaqueado Rodrigo tira-lhe o véu, a feição ingênua. O vermelho líquido invade a cozinha, lentamente. Nunca mais! Nunca mais! Dez para dez. As sirenes enfeitam a rua.






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