quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Adriano Nunes: "A codorna chinesa"

‎"A codorna chinesa"







Mamãe sabe o quanto amo a pequena codorna chinesa, mas precisara lembrar-me disso antes de viajar. Não se esqueça da gaiola! Ela deve ser posta para dentro de casa sem ser tocada pela noite, pela astúcia do gato da vizinha. Bichano era terrível. Parecia ter vinte vidas. Ou mais. Quando nascera, passara por uma prova de fogo. Não. De água. Cacilda imergira o felino numa banheira plástica. Voltemos à despedida...

Não precisei levar as malas à porta. Distraí-me e mainha transformou-se em um jato supersônico aos setenta anos, mas acenei como quem quer fundir-se ao táxi. O pensamento levou um bom tempo para regressar ao meu córtex cerebral. Era tardezinha ainda e Bichano estava ocupado, brincando de pegar algum rato, pulando do chão para o sofá, vestido num pulôver, dando saltos mortais, revirando o quintal, aprontando o sete. A pequena codorna era silêncio. Cacilda era novela.

Seis e quarenta. Rafael telefona-me e pergunta-me se eu quero dar uma voltinha de carro. Acho que devo ir mesmo. Tenho uma atração forte por ele e ele deve sentir o mesmo por mim. Sou tímido. Como faria para conquistar o âmago de outro homem? Ah, bem que Cacilda poderia ajudar-me! Tantos namoros! Tantas transas! Nunca se apegara a ninguém. Cacilda era a mão afogando os gatinhos. Não reparei direito quando Rafael chegara. Talvez, a buzina tenha-me alertado. Ou a visão que me cercara subitamente. Quem é ela? É a minha namorada, a Cacilda! Por Medeia, que tragédia! Que comédia! Que alívio! Bichano agora é o malabarista em cima do muro, não é quem me penso, é mais esperto, não sonha amor, não pensa o mundo.

O passeio fora uma delícia. Rafael alisava as pernas de Cacilda enquanto me flertava pelo retrovisor. Os beijos eram tufões e eu percebi, à socapa, um elevar-se sobre o jeans de Rafael. A excitação tomara conta de Bichano. Mirara a gaiola. Dali era um perigo. Teria que arriscar outra vida. A vigésima primeira? O muro era um mero obstáculo. Feito mágico, escalara o seu próprio sonho, o seu instinto de sobrevivência. O aço da gaiola era o Everest. Bichano tinha as garras, a vontade, sabia como ferir e feriu. A noite acabara diante da calçada de Cacilda. Rafael sorrira para mim.

Quando o Sol a pino incendiara o mundo, mamãe resolvera surgir do rascunho, do nada. Penso: Dormira bastante? Sonhara com o sexo imaginário, solitário, com a próxima vez? Rafael... Carlinhos! Carlinhos! Você esqueceu a gaiola! Você esqueceu a codorna! O gato feriu o meu bebezinho! Carlinhos! Não tive coragem de ver as penas espalhadas pela varanda. Optara por observar, de longe, atordoado, mamãe fazendo curativos na asinha do xodó do lar. Sinto: Bichano me paga! Raiva projetada? Cacilda me paga!

A aula de Direito fora um tédio. Bichano esticava-se, eriçava o pelo, andava de lá para cá, devia estar tramando a nova investida. Cacilda fingia não ter gostado do orgasmo junto ao corpo viril de Rafael. Mamãe concluía o jantar enquanto a pequena codorna dava um sinal de existência. Não sei definir se era grito ou canto. Bichano é, neste instante, o equilibrista em cima do muro. A imagem dele não me dilacera o coração. Era instinto aquilo. Era dele. O meu objetivo é outro. Sei perdoar. Rafael ligara-me há pouco. Quer ir ver o mar, apenas comigo. Bichano olha-me feroz, feito delator.














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