"Dize-me quem sou, oh dor!"
Oh, dia tenso e pleno de vazios dilacerantes!
A tensão tangenciou uma tristeza voraz e transcendente.
Perguntei-me, angustiado, se sempre tem que ser assim, se sempre tem que ser com muita dor e dificuldades,
Se tem que roçar o nosso limite, a nossa existência.
Nessa hora escura, dos corvos e das expectativas asfixiantes,
O que fazer, onde buscar um bálsamo?
Como procedem os sábios ante a tormenta do agora,
Que ditam os manuais de virtude e sabedoria,
Onde a nossa humanidade mais intacta
Se acha, para não nos deixarmos ficar
Abalados com as intempéries do acaso
Ou do determinismo cruel das divindades? Fechei os olhos. Lembrei-me de Cristo,
Shakespeare, Montaigne, de Gracián,
Do sábio de Concord, de André Comte-Sponville,
De Sêneca e Cicero, de Kant e Nietzsche, de Jó,
Das máximas e sentenças de La Rochefoucauld e
Goethe, dos ensinamentos de
Simone Weil e de Hannah Arendt,
Dos Pré-Socráticos. De Platão e Aristóteles.
De Spinoza. Da minha amada mãe.
Tudo dói enquanto tudo. Respirei fundo.
Escrevi um poema em inglês. Um poema fraco, meloso.
Queria dizer do meu amor pela poesia.
Este amor mor que me mantém vivo.
Se a poesia não tem finalidade, ela tem uma vasta função humana.
Lembrei-me de Pessoa com toda a sua genialidade e amplidão
Naquele quarto pequeno a ser mais
Que tudo e todos. Lembrei-me da alegria
Da liberdade da poeta chinesa, do resgate das crianças tailandesas.
É preciso lembrar para o mundo doer menos.
É preciso esquecer para a vida doer menos.
É preciso cantar o instante que dói e dilacera
Para que haja a catarse necessária. Sempre
Estaremos cometendo erros. E sempre
Estarão peremptoriamente a nos cobrar
Imperdoavelmente por isto como temos também cobrado
Dos outros. A nossa moral falida a reconstruir
O espetáculo de horrores que engendramos
Em nós porque somos incapazes de reconhecer e respeitar
Aquilo que se distingue de nós, desde o símbolo ao ato,
Desde a matéria bruta ao espírito,
Desde a descrença à fé.
A razão tem me salvado dessas dores, certamente.
Tem-me dito: "calma, se for preciso, escreva e escreva... tudo passa".
Lembrei-me de Vieira e dos Sermões.
Dos versos de Bandeira e Baudelaire.
Dos amigos que escrevem versos todos os dias por amor à poesia
E, talvez, nunca venham a publicar um livro.
Lembrei-me dos horrores do fascismo e nazismo.
Ah, lembrei-me de que preciso estar atento e firme contra tudo que me penso e sinto, se necessário,
Para evitar o egoísmo banal e indiferente ao que não sou.
Quis chorar. Quis voltar à infância já corroída pelo ácido das desesperanças.
Quis sentir e sentir-me. Já é noite.
Assombram-me os vestígios de que falhei comigo a vida inteira!
Aterroriza-me a frustração de haver outros em mim a que não pude dar vez ou chance.
Quero gritar, e o grito é esta estética de alicerces que me desenganam de mim.
Fui o que as minhas esperanças me choraram.
Fui o espectro das verdades que descartei enquanto estava a salvo
De quem eu poderia ser sem meus assaltos de ilusão e tédio!
Já é noite. Dez para as dez. Baco não veio
Para comemorarmos os destinos das minhas tentações.
Erato acena de longe com a sua lira. Estou só na escuridão do quarto.
Tudo dói enquanto tudo. Tudo se desfaz em proeza e pressa,
Porque angústias e pesos se acumulam em meu âmago.
Tento afastar o abutre do fígado de Prometeu.
Ah, por que me atormenta fundo ser a pedra, a corrente, o abismo?
Por que me destrói a facilidade de dizer isto com a clareza dos dias de sol na alameda,
Depois dos escassos horizontes de felicidade? Hoje foi um dia tenso.
Quis mais de mim, mas sou o das saudades eternas,
O grego deslocado no tempo prestes a partir para Ítaca, onde já não há o tempo!
Lembrei-me de que te amo. Ó, Poesia,
Volta do absurdo e leva-me à fatalidade de ser!
Devolve-me o arco e a flecha dos desatinos rítmicos e métricos!
Canta, oh, Musa ignota, a primeva ode qual bálsamo e devir!
Oh, Olvido, faze-me ser devorado pela Esfinge
Antes que ela se precipite no báratro das minhas sinapses!
Dize-me quem sou, oh dor!
Adriano Nunes