quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Adriano Nunes: "A ilusão remendada"

"A ilusão remendada"


Tudo está remendado.
As roupas novas,
Os trapos todos, o jogo mimético 
De contrariar as expectativas
Do gozo sem gozo e sem expectativas.
Os sentimentos e o asco
De só ter sentimentos
Para o dizer que só se tem
Sentimento já gasto. Como uma vírgula.
Comme une folie à deux.
A ilusão remendada.
O silêncio e os conchavos.
A casa e a memória e os pedaços
Do desejo que se arruinou enquanto
Ainda pulsava.
Ah, até a ética! Até a estética!
Ó saudade corrosivamente moribunda!
Ó solidão astuta, mas vassala
Das peripécias dos acasos!
A instrumentalidade que não nos esfacele!
Todas as noites os remendos de tudo.
Todas as noites as desconversas epilépticas.
Todas as horas o infortúnio do medo de ver
Pregados à parede o nosso desassossego blasé,
A nossa barbárie bêbada de nossa podridão,
O alegórico desfile de metáforas cariadas,
O nosso clichê sub-reptício
Sempre à espera de que tudo dê certo.
Tudo está remendado e fétido.
As elegâncias trôpegas prontas para
Iluminarem o tudo-nada do sonho.
O nosso tédio que não mais incomoda.
Senhor, a sua ficha!
Senhora, portão dezoito!
Por ali. Por lá. Por onde. Para quando. E estamos
Desafiados por nossas antipatias de classe,
Nossos estereótipos rabugentos.
Senhor, espere um pouco mais!
Senhora, só amanhã!
Saímos do esgotamento vencidos.
Traímo-nos desdenhando da algaravia perniciosa
Dos outdoors da paciência.
Remendados ex officio. Subprodutos da pressa
E das pressões contingentes.
Mecanizados. Robóticos. Amarguradamente
Caminhando pelas vielas do conformismo.
E acenamos com delicadeza
Para cada transeunte desconhecido
Porque desonestamente temos reprimido
Em nós a vida inteira e os seus matizes
De amplidão.

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